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Onde o jazz se cruza com a música clássica |
Na sua história de mais de cem anos, os caminhos do jazz e da música clássica têm-se cruzado várias vezes. Ao ponto de Duke Ellington ou Chick Corea escreverem música sinfónica para orquestra. |
No espaço de poucos meses, entre 2020 e 2021, o mundo do jazz recebeu duas notícias que deixaram consternados muitos fãs pelo mundo inteiro: Keith Jarrett estava definitivamente incapacitado para tocar piano, devido a recorrentes, duradouros e graves problemas de saúde, e Chick Corea falecia de doença repentina, pouco após um diagnóstico oncológico. |
Ambos deixaram a sua marca como incontestáveis pianistas, improvisadores, compositores e muito mais. E os dois tinham em comum um traço que, afinal, muitos mais jazzmen partilham entre si: o interesse e a dedicação pela música clássica. |
De Keith Jarrett, aprendi, ainda adolescente, a gostar das suas gravações das Suites de Handel ou dos 24 Prelúdios e Fugas de Shostakovich, partituras escritas em plena linguagem clássica por diferentes mestres do passado. Já de Chick Corea, muitos ficarão espantados por saber que havia até há dias uma última criação sua ainda por ouvir. Não se tratava de uma demo tape perdida algures em estúdio ou de uma lead sheet que apareceu entre as papeladas do músico. Nada disso. Trata-se de um concerto para trombone e orquestra, resultado de uma encomenda conjunta de várias orquestras internacionais (entre elas a Orquestra Gulbenkian (!) — o que significa que mais cedo ou mais tarde esta música será ouvida por cá), que Chick Corea estava a escrever para o trombonista Joseph Alessi, da Filarmónica de Nova Iorque, partitura cuja morte o impediu de entregar. |
Segundo consta, o manuscrito já estava terminado, faltando apenas dar-lhe as revisões finais e iniciar os ensaios, o que não foi possível devido à pandemia e à doença de Corea. Compositor e solista chegaram a encontrar-se para explorar a música, como pode ser visto neste curto vídeo partilhado pela orquestra. |
Na temporada de 2020-2021, Corea era o compositor em residência com esta orquestra mas as circunstâncias de força maior que se impuseram ditaram que desta incumbência não resultasse nada de concreto. Pelo menos até agora, pois o concerto foi finalmente estreado no fim de Maio de 2023, com direcção de Marin Alsop. E, como nota Alessi, haverá certamente muito público a querer ouvir uma orquestra quando é ali que está o último suspiro criativo do mestre Chick Corea. |
Pode parecer bizarro que o autor de Spain termine a sua carreira, post-mortem, no palco clássico e sinfónico, mas não é de modo algum coisa rara. Na já longa história do jazz, foram constantes os cruzamentos entre o mundo jazzístico e clássico, ou não abrisse o próprio Spain com acordes e melodias emprestadas do imortal Concierto de Aranjuez do compositor valenciano Joaquín Rodrigo. |
São quiçá mais famosas as influências do jazz na criação de compositores de escola clássica, como Maurice Ravel, Darius Milhaud ou Leonard Bernstein, mas o contrário também existe. Tanto assim é que há compositores que obstinadamente se recusam a serem catalogados, de tal forma têm um pé fincado em cada lado da fronteira. São os casos de George Gershwin ou Kurt Weil, de quem já muito falei e escrevi. |
A lista de jazzmen (onde também há muitas mulheres) que aprenderam, buscaram e encontraram conhecimento, experiência e inspiração na música clássica é interminável. Cole Porter chegou a desejar vingar no meio clássico em Paris. Duke Ellington escreveu uma sinfonia. A capacidade de Nina Simone tocar repertório clássico ao piano era lendária. Dorothy Ashby fez um percurso académico que lhe poderia ter garantido lugar enquanto harpista em qualquer orquestra. Wynton Marsalis ganhou prémios a tocar concerto para trompete do repertório clássico do século XVIII. Chick Corea tocou Mozart com a Filarmónica de Nova Iorque nos anos 1990. Bobby McFerrin cantou uma linha de violoncelo num concerto escrito por Vivaldi. A música de Bach vive em criações de Django Reinhardt, Oscar Peterson, Bill Evans, Matt Herskowitz e muitos mais. O pianista Jacques Loussier jazzificou praticamente o catálogo inteiro de Chopin, até porque no fim de contas, toda a música pode ser jazzificada. A lista não tem fim. |
A verdade é que, apesar de serem práticas diferentes, como atesta a dualidade interpretação vs. improvisação, partitura vs. standard, música de câmara vs. combo, ambas as escolas partilham muito. O Google até sugere a questão “Why do jazz musicians love Bach” como um dos temas mais procurados neste âmbito, sendo evidente que o compositor alemão sempre foi aquele que mais se prestou a tudo, do jazz ao pop, surgindo plagiado ou emprestado em incontáveis músicas dos Procol Harum a Jethro Tull. |
Um exemplo de extraordinária vivacidade desta relação cruzada está a acontecer mesmo à frente dos nossos olhos e vem dos EUA, ou não fosse esta a casa-mãe do jazz: Na edição dos Grammy’s de 2023, o vencedor na categoria de ópera foi nada mais nada menos do que Terence Blanchard, trompetista, compositor e arranjador multifacetado que emerge do mundo big band e que teve, recentemente, uma grande produção duma outra ópera sua, Champion, apresentada na Metropolitan Opera, que também será certamente candidata a um Grammy quando for lançada em disco. Neste caso, o título vencedor do gramofone dourado foi Fire shut up in my bones, interpretada pela orquestra do Met e com direcção de Yannick Nézet-Séguin (sobre o qual já aqui escrevi vezes que cheguem, mas que foi nomeado em três categorias para os Grammy’s deste ano…). |
Por cá, os exemplos também são muitos: desde o icónico programa Três Pianos, em que Bernardo Sassetti, Mário Laginha e Pedro Burmester levaram vários público ao delírio numa encantatória viagem (felizmente lançada em DVD pela RTP, para preservação da memória futura), às fugas que Mário Laginha inclui no seu disco Canções e Fugas de 2006, às colaborações múltiplas do pianista e compositor Daniel Bernardes, que incluem os Drumming GP, deste que é um compositor que conjuga no seu percurso de aprendizagem o Hot Clube de Portugal e os Seminários de Composição da Fundação Calouste Gulbenkian orientados por Emmanuel Nunes. A lista também continua e é difícil ver-lhe um fim. |
O ecletismo destes artistas é o que faz das áreas artísticas em que se movem e actuam algo de tão vivo e interessante. Ao enriquecerem-se fora de portas, trazem riqueza para o seu quintal. E, para aqueles que teimam em procurar a matriz, a etiqueta e o código de barras na música que ouvem, a minha sugestão é que tentem escutar música como se os géneros não existissem e fossem uma convenção ilusória, criada para ajudar a encontrar discos nas prateleiras das lojas. Porque, se calhar, até se dá o caso de ser mesmo assim. |
Martim Sousa Tavares desenvolve uma atividade múltipla em prol da música clássica e da cultura. Dirige orquestras, é autor de programas na televisão, na rádio e em podcast, escreve música e sobre a música e realiza conferências [ver o perfil completo]. |
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