Muito dinheiro, muitos problemas? |
E se nos saísse o Euromilhões? Acho que quase todos nós já nos fizemos esta pergunta, (tirando aqueles que consideram que o dinheiro é o demónio, e os que não jogam por convicção, ou simples falta de fé). A pergunta pode repetir-se semanalmente (para os que não perdem uma oportunidade de tentar a sorte), ou só de vez em quando, nomeadamente nos inícios de ano, em que os sonhos estão ao rubro. A resposta vem geralmente acompanhada de suspiros, exclamações enlevadas, onomatopeias exacerbadas. Que bom seria, tantos sonhos para realizar, tantas pessoas que faríamos felizes, tantas viagens, e aquela casa, e aquele carro, e isto, e aquilo (e há tantas e tantas histórias de vidas viradas do avesso, no mau sentido, que até há quem lhe chame a “maldição” dos vencedores). |
Quando era miúda, ainda não havia Euromilhões, mas já existia Totoloto. E lembro-me de ver adultos, à desgarrada, sugerindo formas de se vingarem dos respetivos chefes, sendo que a que mais me impressionou foi a do putativo vencedor que se imaginava a chegar ao escritório, na segunda-feira de manhã, a trepar para a secretária do superior hierárquico, abrir a braguilha e, perante o olhar alucinado da autoridade, urinar por cima de toda a papelada. Aquilo fez-me pensar que, das duas uma: ou quem sonhava era um maníaco a precisar de internamento, ou o chefe dele havia de ser uma criatura verdadeiramente execrável. De todo o modo, a excitação daquele grupo de gente crescida, para ver quem se despedia da forma mais exuberante, deu-me uma péssima primeira impressão sobre o que seria o mercado de trabalho. |
Bom, mas a pergunta “E se nos saísse o Euromilhões?” vem, no nosso caso e aqui em casa, com uma “preocupação” a reboque (o que não deixa de ter graça – o mais certo é nunca ganharmos rigorosamente nada e, mesmo assim, detemo-nos já a pensar nos problemas). E a preocupação é: como é que fazíamos com os miúdos? Ficávamos caladinhos? Inventávamos uma herança mais modesta e íamos gastando disfarçadamente? Ou contávamos? E depois? Como conseguir que mantivessem a boca fechada, sem espalhar por todos os amigos e vizinhança que eram, agora, multimilionários (com todos os riscos associados a essa fanfarronice)? Mas, muito pior do que isso, como educar filhos sem o pressuposto de que é preciso trabalhar para “ganhar a vida”? Como incutir-lhes a vontade de trabalhar, se não fosse “preciso”? Como fazê-los ter interesse por uma ocupação, se o fator sobrevivência não estivesse na equação? |
Isto leva-nos, claro, muito longe (e ainda bem, caso contrário não conseguia fazer render o tema para uma newsletter inteira). Por várias razões. A primeira, e mais evidente, é a de que trabalhar não é só (ou não devia ser) um exercício que se faz para sobreviver. Trabalhar é algo que nos ocupa os dias – que seriam, se não tivéssemos rigorosamente nada para fazer, demasiado longos, demasiado enfadonhos, profundamente vazios. |
Aconteceu-me uma coisa engraçada, um certo dia. Já trabalhava há uns cinco anos e sentia uma felicidade tão grande no meu emprego que nunca me lembrava que o fazia porque tinha de o fazer. Até ao dia em que, por uma situação qualquer que já esqueci, senti uma fúria e pensei: “Vou-me despedir”. Já estava casada, pagava uma casa, já tinha um filho. E foi nesse momento que me dei conta, pela primeira vez, que não trabalhava apenas para me divertir e porque fazia exatamente o que queria e para o que tinha estudado durante quatro anos. Que diabo, afinal, eu não fazia o que queria. Ou melhor, fazia, mas não era totalmente livre. Na hora em que me apeteceu fazer uma birra, percebi que tinha oficialmente entrado (sem me aperceber) no mundo dos adultos-que-têm-de-ficar-num-trabalho-mesmo-que-lhes-apeteça-bater-com-a-porta. |
Tive sorte. A vontade de bater com a porta durou pouco e continuei, sempre e até hoje, a fazer exclusivamente aquilo que me apaixona. A famosa frase de Confúcio é das que mais sentido me faz, entre as tantas frases famosas que se citam a torto e a direito: “Escolhe um trabalho de que gostes, e não terás que trabalhar nem um dia na tua vida”. E, tendo este ponto como premissa, a questão “e se nos saísse o Euromilhões?” era de resposta fácil: diríamos aos nossos filhos para escolherem um ofício que lhes desse verdadeiro prazer, que a felicidade estaria garantida (e a massa também, o que era uma belíssima ajuda). |
Porém, desgraçadamente, o que mais vejo são pessoas que trabalham única e exclusivamente para sobreviver, odiando o que fazem ou, pelo menos, suportando-o com esforço. São raras as que têm a felicidade de trabalhar exatamente naquilo de que gostam, num ambiente saudável, sendo bem remuneradas, sem abusos de horários ou outro tipo de abusos. São raríssimas as pessoas que têm todas estas felicidades juntas. E, por isso, fica difícil educar os miúdos para a ideia de que vão trabalhar um dia para serem felizes e realizados. |
Sempre que uma mãe ou um pai chega a casa a maldizer o emprego, há uma criança a sonhar com o dia em que – também ela – poderá escapar ao “tormento”. Sempre que um grupo de adultos dá asas à imaginação, lançando para cima da mesa formas bizarras de se despedir depois de enriquecer subitamente, há uma criança a supor que o trabalho é uma espécie de inferno inevitável, a menos que haja números e estrelas que batam certo. De resto, havia até uma frase que se dizia amiudadas vezes às criancinhas sempre os pais iam trabalhar (acho que caiu em desuso, provavelmente esvaziada de sentido com a chegada do Euro). A frase era qualquer coisa como: “Vá, agora os papás vão embora, vão ganhar o tostão.” Nunca, em toda a minha existência, escutei uma única alma a dizer ao filho pequeno: “Vá, agora os papás vão trabalhar porque isso os faz imensamente felizes”. Ainda que até faça. |
O trabalho é absolutamente central nas nossas vidas, desde que vamos para a escola, aos 6 anos. Dizem-nos que temos de aprender para sermos “alguém”. Estudamos (uns mais, outros menos), começamos a trabalhar e, na maior parte das vezes, quando conhecemos outras pessoas, a primeira pergunta que nos fazem é: “O que é que fazes na vida?” Somos, muitas vezes, medidos mais pelo que fazemos do que pelo que somos. |
Esta realidade tem-me sido esfregada na cara de uma forma muito intensa nos últimos meses. Passo a explicar: criei em setembro um projeto de entrevistas de vida por encomenda (gravadas em áudio, porque guardamos centenas de fotografias dos que amamos mas não a sua voz, e sobretudo, não a sua voz contando a própria história de vida), e tenho desde então entrevistado dezenas de pessoas, a esmagadora maioria com vidas já longas. E diria que o denominador comum a todas, sem exceção, é a forma como o trabalho é o núcleo, a pedra basilar. Há pessoas (a maioria) que falam brevemente sobre os filhos e os netos, sobre férias ou momentos de lazer, mas alongam-se detalhadamente sobre o percurso profissional, ainda que o percurso profissional tenha sido de uma dureza extrema, num tempo em que era perfeitamente normal começar a trabalhar aos 10 anos na agricultura e ser espancado por um patrão descontente, num Portugal profundo e profundamente pobre, em que se ia para o campo descalço no Inverno, pastorear rebanhos, e se dormia em espigueiros com a barriga vazia e saudades de casa e da mãe. |
Eu bem puxo pelo lado emocional, por histórias que saiam do âmbito do trabalho, pelas alegrias da parentalidade, pelo prazer de ter netos, mas… muitas vezes, sai pouco sumo dessa laranja. É o trabalho que define estas pessoas. E é por isso que, também muitas vezes, é a falta do trabalho que as mata devagarinho. |
Tenho curiosidade em saber se, daqui a cinquenta anos, a geração dos meus filhos terá este mesmo discurso ou se isto é malta que já descobriu que a vida tem muitas outras facetas e que o trabalho é bom, sim senhor, mas que há mais para lá dele. Na verdade, imaginando que alguém me fazia uma entrevista de vida, daqui a vinte anos, creio que falaria de bem mais do que de trabalho, pelo que julgo que a mudança já começou a operar-se há mais tempo. |
Mas afastei-me (como já vai sendo meu apanágio) do tema primeiro desta newsletter, apesar de estar tudo intrinsecamente ligado: o Euromilhões e o modo como se educam filhos que até então não eram milionários, para uma nova e diametralmente oposta realidade — a de poderem ter tudo, sem esforço. E a de poderem pensar que a vida, agora que lhes é fácil, não requer deles grandes feitos, grandes empenhos, grandes ou pequenos sacrifícios. E a pergunta maior acho que é mesmo esta: como não permitir que eles se transformem nuns inúteis, sem qualquer substância, sem qualquer interesse, profundidade, garra, ambição, ganas de vencer? |
Espero ser posta perante este problema em breve – dava-me um jeito do caraças, que eu cá já trabalhei bastante e podia dedicar-me simplesmente a ajudar quem mais precisa (e a resolver a complexa questão da educação dos meus filhos novos-ricos). Depois conto-vos como me safei. Talvez a bordo de um iate algures no Pacífico. |
Vale a pena… |
Ler o livro Na Sombra, do Príncipe (ou deverei dizer ex-Príncipe?) Harry
Aqui está um belo exemplo de alguém que não ganhou o Euromilhões, mas a quem ter nascido em berço de ouro não trouxe propriamente muitas alegrias. Calhando, é uma boa leitura para o caso de não correr bem a ideia do Euromilhões. Sempre nos vamos conformando com a desgraça alheia e constatando que, na volta, são preferíveis as nossas modestas misérias do que as principescas dores de cabeça de quem vive (ou vivia) em palácios reais. Pobretes mas alegretes, sempre ouvi dizer.
(ed. Objectiva) |
Fazer um choradinho para umas sessões extra da peça Todas as Coisas Maravilhosas, com Ivo Canelas
Já vi duas vezes e estava capaz de ir uma terceira, mas quando fui tentar já tinha esgotado. É simplesmente delicioso, este monólogo deste ator extraordinário, com texto de Duncan Macmillan. Sinto-me um bocadinho mal de vos estar a aliciar a ver um espetáculo que está esgotado, mas tenho esperança que, se formos muitos a pedir, ele abra mais umas sessões (que esgotarão em poucas horas). Numa das vezes levei os meus filhos mais velhos, e ambos ficaram deliciados. É sobre os pequenos prazeres da vida (elencados com o objetivo de tentar resgatar alguém da tristeza), o que vem mesmo a calhar para nos mostrar que o dinheiro não é tudo (apesar de ajudar bastante). |
Lavar o carro, numa daquelas máquinas automáticas, com os filhos (se eles forem pequenos)
Quem é que vos dá ideias mesmo boas, baratas e úteis, quem é? Se nunca levaram as crianças, levem. Eles gostam de ver as escovas esmagadas de encontro aos vidros, a espuma a formar-se nas janelas, o carro a ser ensaboado com todo aquele estrépito, e os jatos de água e o secador. Parece um programa poucochinho mas… há coisas poucochinhas que podem ser bastante satisfatórias. Se eles gostarem, é um dois-em-um: crianças felizes e carro a brilhar. |
E, claro, sonhar com o Euromilhões
Depois desta reflexão toda, não podia deixar de vos sugerir que sonhem com a sorte. Se ganharem, não esqueçam esta vossa serva, que até vos deu a ideia. E boa sorte a educarem os vossos filhos, se os tiverem, quando ficarem milionários. |
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Sónia Morais Santos é autora do blogue “Cocó na Fralda“. Ex-jornalista, tem quatro filhos e dois cães, já passou por vários jornais e revistas em Portugal e publicou quatro livros [ver o perfil completo]. |
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