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Dia do Filho do Meio? Sim, há uma data para isso |
Celebrou-se ontem o Dia do Filho do Meio. Sim, é oficial, há mesmo dias para tudo e mais um par de botas. Mas, será que faz realmente sentido dizer que os filhos do meio são diferentes dos outros? Quer dizer, não serão os filhos, por definição, todos diferentes, qualquer que seja a sua posição na hierarquia familiar? Pois bem, como mãe de quatro (e por isso mãe não de um, mas dois filhos do meio), acho que posso concordar com a tese de que sim, eles são todos diferentes, mas há mesmo uns mais diferentes do que outros |
Há quem diga que os miúdos de hoje parecem já nascer ensinados. Cá por casa, um dos nossos filhos parece ter nascido a saber que não ia ser o último. Com efeito, ainda não tinha mais irmãos e já se comportava como alguns especialistas referem que é habitual comportarem-se os do meio (o Martim tinha uns 3 anos quando limpou o rabo a uns cortinados, urinou no tapete da avó quando ela tinha visitas, bebeu xarope, mostrou a pilinha a toda a vizinhança, entre um sem número de outras peripécias que continuam a ser recordadas, com sucesso, nos jantares de Natal). Sempre foi o do meio, antes mesmo de existir meio, pelo que fico sem saber se é adivinho, ou se as teorias sobre o filho-sanduiche não passam disso mesmo: teorias. |
Foi o psicólogo austríaco Alfred Adler (1870-1937) o primeiro a estudar a importância da ordem do nascimento na definição de traços de personalidade: “É uma falácia comum, imaginar que as crianças de uma mesma família são formadas no mesmo ambiente. Claro que há muito que é comum para todas, dentro da mesma casa, mas a situação psíquica de cada criança é individual e difere da situação das outras devido à ordem da sua sucessão.” (Adler, 1964) |
Na verdade, faz algum sentido. O primeiro filho representa a grande paulada na cabeça dos pais. Confrontados com um amor daquela magnitude pela primeira vez, os pais podem sentir uma ânsia de criar o ser perfeito: inteligente, atlético, sociável, culto, divertido, uma espécie de tudo-em-um inalcançável (mas não vamos estragar-lhes os sonhos). |
Quando o meu primeiro filho nasceu, lembro-me de sentir que tinha em mãos a missão da minha vida. E pensava coisas poéticas como “É como ter um livro em branco, e somos nós os primeiros aqui a escrever. É como ter um pedaço de barro e somos nós que lhe vamos dar forma.” Eram as hormonas, claro, e uma dose generosa de dramatismo que me acompanha desde tenra idade. Mas creio que acontece a muito boa gente. Aquele amor primeiro e primário pode ter efeitos secundários violentos. E depois, no círculo de amigos, começam a nascer vários primeiros filhos, pelo que surgem também as competições para ver qual deles estará melhor posicionado para ganhar a taça do filho-livro mais bem escrito, do filho-barro melhor esculpido, e por aí fora, que metáforas de matéria-prima em bruto capaz de virar obra de arte não faltam. |
É talvez por conta de tudo isto que os primeiros filhos costumam ser mais certinhos, mais educados, melhores alunos e, muitas vezes, demasiado perfeccionistas. |
Antes de Alfred Adler falar da questão da ordem do nascimento como condicionante da personalidade, Francis Galton (1822-1911), um antropólogo, matemático e estatístico inglês (e primo de Charles Darwin), publicou o livro English Men of Science: Their Nature and Nurture (1874). Nesta obra, Galton estudou o perfil de 180 cientistas de relevo e, durante a sua investigação reparou em algo peculiar: a maior parte dos cientistas de renome da sua lista eram primogénitos. |
Nessa altura, porém, as razões apontadas para este putativo brilhantismo dos filhos mais velhos tinham sobretudo que ver com o facto de os primeiros filhos terem mais hipótese de estudar (para os seguintes, muitas vezes, já não havia condições financeiras). Mas também se concluiu que os pais davam mais atenção e responsabilidade aos primogénitos, coisa que, segundo subsequentes estudos, se manteve imutável ao longo dos anos. |
Voltando a Alfred Adler, o psicólogo afirmava que os primogénitos tinham uma maior identificação com o ambiente dos adultos e, por isso, desenvolviam mais esse sentido de responsabilidade (mas também se tornavam, com mais facilidade, neuróticos). Os mais novos teriam um futuro mais criativo, e os do meio (ele próprio era um filho do meio), seriam emocionalmente mais estáveis e habituados desde sempre a partilhar (com os mais velhos e com os mais novos). |
Depois de Adler, multiplicaram-se os estudos, mais ou menos (ou nada) científicos, em países um pouco por todo o mundo. Houve os que garantiram haver uma relação entre personalidade e ordem de nascimento na família, e houve os que desmontaram essa ideia de forma peremptória. |
Entre os que corroboraram a teoria de Adler, está o psicólogo americano Frank J. Sulloway, autor do livro Born to be Rebel (1996). O método usado por Sulloway foi verdadeiramente pioneiro: analisou 121 eventos históricos e usou informação biográfica de mais de 6500 indivíduos. Nos eventos analisados, estavam 28 revoluções científicas, entre elas a Teoria Heliocêntrica de Copérnico, a Teoria da Evolução e Seleção Natural de Darwin, ou a Teoria da Deriva Continental de Wegener. Sulloway recolheu informação sobre os cientistas que desempenharam um papel central em cada uma das revoluções (apoiantes ou antagonistas). Entre todos os fatores analisados, o psicólogo encontrou um que se revelou como a primeira influência. Já adivinhou: a ordem de nascimento. Segundo Sulloway, os cientistas nascidos mais tarde na família eram os mais vanguardistas, capazes de abraçar mais facilmente teorias altamente disruptivas para a época. Ao contrário, os primogénitos alinhavam mais pelo status quo. |
Mas depois vieram os que pegaram nisto e desfizeram em pequenos pedacinhos. Entre eles, destaca-se Stefan Schmukle. O psicólogo alemão conduziu um estudo, publicado em 2015, que contou com a participação de 20.000 (vinte mil!) indivíduos analisados, de três países diferentes: Estados Unidos da América, Alemanha, e Reino Unido. No final, a conclusão, que reza mais ou menos assim: “Não encontrámos efeitos consistentes que relacionem a ordem de nascimento com a extroversão, a estabilidade emocional, a amabilidade, a consciência, ou a imaginação. Tendo por base a altíssima amostra estatística, bem como a consistência dos resultados analíticos, temos de concluir que a ordem de nascimento não tem um efeito duradouro nos traços de personalidade.” |
Perante um estudo que mete 3 países ao barulho e uma amostra de 20 mil almas, fica difícil acreditar na história que continuam a vender-nos como verdadeira, de que os filhos têm diferentes personalidades consoantes são os primeiros, os do meio, ou os últimos. Ainda que, olhando para o meu pequeníssimo (quando comparado com 20 mil objetos de análise) “laboratório”, diria que aquilo que apontam como sendo típico dos filhos do meio encaixa na perfeição no meu primeiro filho do meio, o Martim. |
É que o Martim não é só o filho do meio. Ele é o filho do meio que nasceu a seguir a um rapaz e antes de uma rapariga. Bem sei que estas definições de género (e estereótipos associados) estão a cair em desuso, mas a verdade é que senti por várias ocasiões que a sua posição na hierarquia familiar acabou a ficar meio ingrata. Não era o mais velho (sendo que o mais velho fazia um “check” em todos os pressupostos de Adler e “discípulos: certinho, responsável, a sentir-se bem entre os adultos), não era o único rapaz, não era uma rapariga. Depois, como se não bastasse, ainda nasceu mais um rapaz, o quarto filho, que encarnou o bebé mimado da família (uma vez mais como sugeriam os defensores da teoria da ordem de nascimento como o grande moldador da personalidade). |
A verdade é que esta ideia do filho do meio continua a ter seguidores, e até um dia do ano para ser celebrada (12 de Agosto). Continuam a escrever-se livros sobre o assunto, proliferam artigos publicados na mais variada imprensa nacional e internacional. Há piadas sobre o assunto e até memes. |
Em suma, dizem que os filhos do meio são rebeldes, sociáveis, menos orientados para a família, mais independentes e passíveis de viver longe do país de origem, menos perfeccionistas. Assim de repente, diria que se comparássemos os filhos com animais domésticos, os primogénitos seriam cães, e os do meio seriam definitivamente gatos. Só não sei que outros paralelismos poderíamos fazer com os restantes irmãos, mas é coisa sobre a qual me vou debruçar (mentira, tenho mais que fazer). |
Vale a pena… |
Ler A Mãe às Vezes Tem a Cabeça Cheia de Trovões (ed. Alma dos Livros) |
Um livro que é uma delícia, e não sou só eu que digo, já que foi finalista do Prémio Algar de Literatura Infantil. Foi escrito por Bea Taboada e ilustrado por Dani Padrón (ed. Alma dos Livros, 2022) e gosto porque mostra às crianças que os adultos (nomeadamente as mães) não são perfeitos. Têm emoções, zangam-se, entristecem, esquecem-se, ficam felizes. “Às vezes, a mãe tem nuvens na cabeça. Esquece-se do meu lanche e chegamos atrasadas às festas de aniversário. Outras vezes, a mãe tem um arco-íris na cabeça. Canta no carro e dá-me milhões de beijinhos. Às vezes, a mãe tem a cabeça cheia de trovões. Fala alto e aperta os dentes com força. Será que eu também tenho nuvens, arco-íris e trovões na cabeça?” Uma excelente abordagem ao complexo mundo das emoções, todas humanas, todas comuns a todos nós. |
Ir ao teatro para ver Eu Odeio a Minha Irmã |
Está em cena da Quinta da Ribafria, em Sintra, hoje (sábado, 13 de Agosto) e amanhã. A peça é para maiores de 6 e, no dia em que escrevo sobre irmãos, não podia ser mais indicada. O espetáculo divide-se em duas performances com textos dramáticos de Sébastien Joanniez. Numa delas temos a irmã mais velha, na outra, a irmã mais nova. Ambas se queixam do seu papel na família, com uma linguagem humorística e inventiva. Ambas confessam odiar a irmã mas o que se subentende é que, afinal, elas amam-se perdidamente. |
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Sónia Morais Santos é autora do blogue “Cocó na Fralda“. Ex-jornalista, tem quatro filhos e dois cães, já passou por vários jornais e revistas em Portugal e publicou quatro livros [ver o perfil completo]. |
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