Irmãos: nem sempre mel, por vezes fel |
Celebrou-se, na passada quarta-feira, mais um Dia dos Irmãos. É possível que eu tenha uma visão romantizada sobre este tema, pelo facto de, em primeiro lugar, ter levado 11 anos a pedir uma irmã, a sonhar com ela, a pedir à minha mãe que se despedisse, à noite, desse ser imaginário e quase mítico, a implorar à minha madrasta que tratasse do assunto. Em segundo lugar, porque o nascimento dela representou uma felicidade muito semelhante à de ter um filho. Sim, eu só tinha 11 anos e fui mãe. Senti aquele ratinho como meu. Não sei se chorei de emoção, talvez o júbilo fosse superior ao sentimentalismo, mas não consigo evitar as lágrimas agora, sempre que recordo esse momento. |
Lembro-me de me encher de febre depois de a ir visitar ao hospital e de ter ouvido o meu pai dizer que devia ser uma reação ao nascimento, que eu devia estar com ciúmes. Fiquei chocada. Como assim, ciúmes? Tinha acabado de me acontecer a melhor coisa da minha curta vida. Como é que alguém se atrevia a pensar que eu podia ter sentimentos negativos, tão negativos que me fizessem subir a temperatura corporal? No dia seguinte, o médico confirmou que eu tinha uma valente amigdalite, e eu senti, por fim, a verdade reposta. |
Ciúmes? Bah! Eu queria aquela irmã, não como quem quer uma Barbie, uns patins, um casaco de penas. Eu queria aquela irmã como uma mulher que faz há anos tratamentos de fertilidade. Com o mesmo desespero, com as mesmas ganas, com a mesma fome. Tê-la nos braços foi uma explosão de cor e de perfeição na minha vida, como se eu só tivesse nascido para usufruir daquele momento. Era como se, por fim, a vida fizesse sentido. |
Eu avisei que é possível que tenha dos irmãos uma visão romantizada. A verdade é que os anos passaram e a nossa relação manteve-se sempre assim, e tenho muitas dúvidas de que haja alguma coisa que possa escavacá-la. Só não digo que tenho a certeza porque – também já o disse nestas newsletters – não tenho certezas a respeito de coisa alguma. Já ouvi dizer que as heranças podem dar cabo da mais sólida união. No nosso caso, não haverá muito a herdar, o que também ajuda. Mas mesmo que tivéssemos um império inteiro para dividir, tipo Succession, tenho a convicção de que o faríamos salvaguardando o mais importante: o amor que nos une. |
Quando tive o primeiro filho, fiquei de tal modo apanhada, que se me meteu uma ideia bizarra na cabeça que levou algum tempo a sair. Preparem-se. Pensei: “Não posso ter mais filhos. Se, por algum azar do destino, perder este, não quero ter de sobreviver. Quero morrer logo, para não ter de carregar a maior de todas as dores. Se tiver mais filhos, tenho de ficar, por eles.” Quão chalupa pode ser isto? Talvez o destrambelhamento das hormonas ajude a explicar. |
Não me lembro bem de como evoluí deste ponto para aquele em que já tinha quatro filhos. Mas ainda bem que consegui ultrapassar a fúria hormonal, ou o embevecimento quase doentio com o primeiro bebé que nasceu de mim. Porque sou muito feliz a ser mãe de uma turminha. E tão agradecida por ter podido dar aos meus filhos o maior presente que sinto que lhes podia ter dado, como tão bem explica este artigo do Washington Post. |
Nem sempre eles concordam com esta premissa. Quando discutem sobre quem leva os cães à rua, quando um leva a bicicleta GIRA do outro e o deixa apeado, quando um tece considerações sobre os amigos do outro, ou sobre as roupas, ou sobre a vida em geral. Há alturas em que suspiram por um quarto só para eles (em cada quarto dormem dois), há momentos em que dizem que gostavam que os outros não existissem. Mas eu continuo a acreditar que são apenas momentos. E que, no geral, somos um clã que está lá para o bom e para o mau. Sinto que eles ainda gostam de estar de férias todos juntos e que quanto um não vai parece que nos falta, a todos, alguma coisa. E até já consigo ver, entre dois deles que pareciam talhados para se odiar, instantes de amor. São pequenos átimos, um olhar, um sorriso, um empurrão que é mais carinhoso do que bruto, um elogio, um “eu acho que ele/ela tem razão”. |
Sim, até há pouco tempo, dois dos meus quatro filhos só pareciam conseguir detestar-se. Nada que se parecesse com esta terrível história contada pelo The Guardian, de dois irmãos que nutriam um ódio tão profundo um pelo outro que quase destruíram toda a família. Mas era uma embirração permanente. E isso, para quem tem esta visão romantizada e poética dos irmãos, era mais que uma pedra no sapato. Era um verdadeiro calhau, um prego, e ainda um rasgão na sola. |
Tudo começou quando ele, aos 4 anos, soube que eu estava grávida. “Vão ter um irmão ou uma irmã.” Ele não gostou. Nada! A notícia abalou-o de tal forma que deixou de aparecer na nossa cama à noite (e, antes, aparecia todas as noites). Ele, que era tão próximo de mim e que me chamava sempre que precisava de alguma coisa, passou a chamar só o pai. Como que a castigar-me por trazer “o inimigo” dentro de mim. |
No dia do nascimento, não era preciso ser psicólogo para constatar o sofrimento dele. Subia e descia cadeiras, abria e fechava portas, trepava paredes, falava alto, parecia desesperado. O quarto cheio de gente e aquela criança em claríssimo “overacting”. Foi preciso fechar-me com ele na casa de banho e abraçá-lo com força, e dizer-lhe que estava tudo bem. |
Depois, a ida para a escola (ainda que fosse a mesma escola) foi um verdadeiro tormento que durou mais de meio ano. Chorava, guinchava, agarrava-se à nossa roupa até saltarem botões. Perdi anos de vida. Creio que ele manifestava desse modo a sua raiva por saber que o deixava ali, enquanto ia para casa com o bebé. A professora e a diretora da escola aconselharam a que passasse a ser o pai a levá-lo. Não melhorou, até melhorar. Suponho que a melhoria tenha acontecido por cansaço, por resignação. |
Talvez eu devesse ter cedido. Talvez devesse tê-lo trazido para casa, para que percebesse que o seu lugar não tinha sido ocupado, que o meu coração era elástico e que o amor pelos filhos não se traduz numa divisão, mas numa conta de multiplicar. Mas a gente sabe lá o que é certo e o que não é. Vivemos a parentalidade da maneira que podemos, que sabemos, fazemos o que nos dizem que é o melhor, por vezes acertamos, outras – tantas – falhamos. Não há fórmulas perfeitas. |
Não sei se teria melhorado se o tivesse deixado faltar à escola (estava na pré-primária, podia não ir). Talvez se lhe tivesse pedido ajuda para cuidar da bebé ele não tivesse ficado tão revoltado. Talvez se se tivesse sentido útil e passasse a olhar para aquele nico de gente com um olhar de proteção e não de competição. Enfim. Não adianta muito matutar nos “e se” das nossas vidas. É desgastante, e sobretudo inútil. O que importa é que tudo temos feito para que os dois irmãos, que são desavindos desde que um nasceu contra a vontade do outro, se apaziguem e aprendam a amar-se. |
Primeiro tentámos forçar, depois deixámos andar, agora creio que colhemos alguns frutos. Devagarinho, entre muita geada, por vezes um temporal. Porque até no campo dos afetos a “agricultura” é difícil e tormentosa. Mas com paciência e trabalho lá chegaremos. Ao tempo da colheita farta. É, pelo menos, essa a minha esperança. Não é essa a esperança de todo o agricultor? |
Um irmão é alguém que convive connosco durante a infância, a adolescência, o início da vida adulta. É alguém com quem se ensaiam tantos papéis que vamos ter pela vida fora. Com quem se compete, com quem se partilha, com quem se esgrimem argumentos. Com quem se desabafa, com quem se chora e se ri, com quem se tem a cumplicidade que, por feitio, educação ou hierarquia, não se tem com os pais. Um irmão protege, cuida, dá colo. Não precisa ser o mais velho ao mais novo. Pode ser uma teia de tudo isso: proteção, cuidado, colo. Dos mais velhos para os mais novos e dos mais novos para os mais velhos. |
Há tanta gente que odeia os irmãos. Muitas pessoas escrevem-me a dar conta disso mesmo: não falo com o meu irmão; sempre odiei a minha irmã; eu e os meus irmãos zangámo-nos; não nos damos; não nos falamos. Sempre que recebo estas mensagens, dói-me quase como se fosse comigo. Como assim? Um irmão? Como? O que correu mal? Porquê? Quem estragou aquela que devia ser a mais bonita das relações? Quem teve a culpa? Como remediar esse tão grande estrago? |
Há dias celebrou-se o Dia dos Irmãos. E eu e o Ricardo já avisámos os nossos quatro filhos que viremos, em jeito de assombração, dar-lhes cabo dos nervos e das noites e da vida toda se porventura se zangarem quando já tivermos morrido. Não haverá jogo Ouija, jogo do copo, mesa pé de galo que nos afaste da nossa missão post mortem: unir quem nunca devia ter-se separado. |
Vale a Pena… |
… Festejar os Santos no Tejo, em Lisboa
Fica na Doca da Marinha, perto do perminado do Terreiro do Paço, e promete ser o “maior santódromo” da capital. Até 12 de junho, As portas abrem todos os dias às 17h. Este sábado podem ver e ouvir a equipa das manhãs da Comercial com “Santos in the night” e amanhã (domingo) quem sobe ao palco é o eterno Herman José. Há comida e bebida com fartura e animação garantida.
Bilhete diário: 7,5€ em www.santosnotejo.pt e nos locais habituais. |
… Aproveitar Serralves em Festa
Depois de três anos de ausência forçada por causa da pandemia, o “maior evento da cultura contemporânea em Portugal” voltou ao espaço da Fundação de Serralves em 50 horas non-stop. Começou ontem, 2 de Junho, e termina no domingo, 4. A oferta cultural é variada e vai desde projetos performativos a música, cinema e oficinas artísticas para toda a família. Ah, e é gratuito. |
… Assistir às Parentali Talks, com Marcos Piangers
Uma palestra sobre “Relações familiares e conexão com o que importa”. Quem já ouviu Marcos Piangers sabe como ele consegue ser emotivo e tocar nos pontos chave sobre isto da parentalidade. Porque o autor brasileiro é um pai eternamente deslumbrado com a beleza daquela que ele considera a maior missão de um ser humano (e eu também, já agora): preparar outra pessoa para o mundo, e o mundo para uma outra pessoa. São três horas que pretendem inspirar os pais a serem melhores ou, pelo menos, mais conscientes. Além de Marcos, o evento vai também contar com Ana Emília Cardoso (companheira do “Papai Pop”), Rafa Nacif, empreendedor e palestrante, Fábio Borges, que acredita que “divertido não é o contrário de sério; divertido é o contrário de chato”. E eu não podia concordar mais.
Hoje, sábado, 3 Junho, às 15h, na Sala Arena do Espaco Origine (São Marcos, Cacém). Bilhetes à venda em Parentali Talks |
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Sónia Morais Santos é autora do blogue “Cocó na Fralda“. Ex-jornalista, tem quatro filhos e dois cães, já passou por vários jornais e revistas em Portugal e publicou quatro livros [ver o perfil completo]. |
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