Um filho de pais experientes pode viver com mais calma |
A natureza é sábia. Durante muito tempo julguei que iria querer ter filhos até ao meu leito de morte. Juro. Acho que só quem tem uma família numerosa compreende isto. Um casal acostuma-se àquela sucessão de explosões de amor, de tempos a tempos, e depois parece que se vicia nessa dose de endorfinas que é injetada numa casa sempre que nasce um novo bebé, como se fosse uma droga de felicidade muito difícil de largar. Do primeiro para o segundo esperámos três anos, do segundo para a terceira, quatro anos, da terceira para o quarto foram seis (mas teriam sido quatro se a minha idade não tivesse começado a mostrar-me que não estava ali para me facilitar a vida, no que à procriação diz respeito). |
O certo é que, de cada vez que nascia um filho, a nossa vida levava uma volta: quartos remodelados, toda a reorganização do ninho, o amor a crescer à medida dos meses, a expectativa, a ansiedade, a preparação dos irmãos para a chegada de um elemento novo. E depois, baralhar e dar de novo. Acolher, dar atenção especial aos outros, amar mais, tentar sempre amar melhor. |
Uma vez entrevistei o advogado João Nabais para o DNA (ex-suplemento de sábado do Diário de Notícias), com quem até já tinha trabalhado na rádio, havia muitos, muitos anos (1996, para ser mais precisa), e ele tinha, na altura da minha entrevista, salvo erro, quatro filhos e esperava o quinto. E lembro-me perfeitamente de o ouvir dizer que o amor por cada novo filho era como uma nova erupção vulcânica, e que era fácil ficar viciado nesse espetáculo pirotécnico do coração, sempre capaz de explodir para um novo amor incondicional, sempre capaz de esticar até ao infinito. Ao tempo, eu só teria um filho, e escutei-o com algum espanto, mas marcou-me aquela descrição. |
Do mesmo modo como me terão marcado as várias entrevistas de vida em que, quando perguntava às pessoas se havia algo de que se arrependessem, me respondiam invariavelmente que gostariam de ter tido mais filhos, e que lastimavam não terem dado esse passo, fosse por receio, por não ser “a hora certa”, ou por falta de condições perfeitas, profissionais ou financeiras — este artigo do The Guardian explica bem o crescimento da “tendência do filho único”. |
E assim foram nascendo, os nossos filhos. E ainda tentámos produzir um quinto, mas o meu corpo simplesmente ignorou as tentativas, e creio que ainda bem, por várias razões. O Mateus, antes mesmo de nascer, era como uma peça que nos faltasse. Cada teste negativo provocava uma tristeza funda, como se não tivéssemos já tanta alegria connosco. O Mateus já existia, antes de existir. Tanto que chegámos a consultar uma clínica de fertilidade e a ponderar pagar uma pipa de massa por uma FIV (Fertilização in Vitro), mas ele acabou por vingar de modo “natural”, depois de dois anos de tentativas. |
Já a ideia de “ir ao quinto”, era mais uma vontade daquelas provocadas pelo tal “vício” de ter vidas novas a desaguar na nossa. Era quase uma graça, já agora mais um, já agora uma mão cheia. Uma mão cheia de filhos é uma ideia bonita. Mas felizmente não aconteceu, até porque suspeito (e quem me vigia o útero também) que era bem provável que não tivesse corrido bem. Falamos de um útero cortado quatro vezes, cansado, gasto, bolboso. Em suma, fartinho de trabalhar. |
Hoje sei que a natureza é sábia porque deixei de ter vontade de estar grávida e adorei cada gravidez, mesmo quando vomitei como uma pescada (nunca percebi esta expressão, as pescadas vomitam?), mesmo quando engordei como uma vaca, mesmo quando me arrastei como um caracol. |
O Mateus veio fechar esta loja com chave de ouro, e ainda não sei se ele é tão diferente dos irmãos por ser o último, se já nasceu com a diferença nos genes, se foi pela idade que nós tínhamos quando ele veio, se é por ter três irmãos e ter crescido sempre no meio de algum caos, de alguma loucura (mentira: de muito caos, de muita loucura). Provavelmente, é tudo. |
Os pais que dizem que educam os filhos da mesma maneira e que eles é que são muito diferentes. Mas esquecem que nunca educam os filhos da mesma maneira: os próprios filhos reagem de formas distintas ao modo como agimos com eles, e nós mudamos, ganhamos experiência, traquejo, por vezes adoçamos, outras amargamos, consoante a vida nos vai moldando. Não, nós não somos os mesmos para os filhos, o ambiente não é igual, a educação não é a idêntica. |
O Mateus. O Mateus é uma alma quieta. Serena. Sempre foi descrito na escola como o menino que não tinha conflitos com ninguém. Ainda hoje, na oferta complementar que a escola proporciona aos pais que não podem ir buscar os filhos às 17h00, os monitores o referem sempre como “o exemplo”, porque não faz barulho, porque obedece, porque não responde. Não sei bem dizer se isto é completamente bom (a rebeldia fez, muitas vezes, progredir o mundo), espero que não seja um submisso, tento lutar para contrariar alguns excessos desta quietude, limar arestas, mas deixá-lo manter a sua essência, ainda que, por vezes, a sua essência me desespere um pouco (eu ando sempre a mil à hora, ele nasceu sem sentido de urgência). |
Ao escrever esta newsletter, e procurando informação extra para sustentar o meu texto, descobri uma organização sem fins lucrativos (Understood) que procura “melhorar o mundo”, oferecendo ferramentas para que quem é diferente (ou quem tem filhos diferentes) perceba exactamente o que se passa. E acho que descobri aquilo que o Mateus tem: “Slow processing speed” (numa tradução à letra: processamento de velocidade lenta). |
Quando comprámos o monte no Alentejo, senti que ele encontrou o seu lugar. Ali, o tempo passa à velocidade a que ele aprecia viver. Temos uns vizinhos com ovelhas, que combinam com ele uma hora de manhã cedo para que vá ajudar a alimentá-las. E ele acorda antes do despertador, contente com o seu “trabalho”. Às vezes, ao contemplar as estrelas, diz-me que tem medo de estar a sonhar: “E se eu acordo e isto não é mesmo verdade?”. |
O Mateus passou muito tempo comigo no monte, só os dois, e eu senti que pude quase despedir-me dele criança, aproveitando cada segundo. Como estávamos os dois, dormimos juntos, e nesses dias acordei sempre com a sua mão sapuda na minha cara, a dar-me festinhas. Demos as mãos sem pudores, porque não havia ninguém a ver (na cidade, já só mesmo para atravessar a estrada e, a seguir, ele remove – umas vezes discretamente, outras nem tanto – a mão de dentro da minha). Brincámos na piscina, fomos correr por montes e vales e até à aldeia. Se ele fosse filho único, não teria dúvidas: mudar-nos-íamos para ali. Inscrevia-o na escola de São Cristóvão, e seria a criança que é, sem pressa, sem o chip do stress que os dias da cidade lhe trazem (e que o fazem suspirar muitas vezes, numa manifestação claríssima de ansiedade). |
Podendo observá-lo com mais atenção naquele que parece ser, efetivamente, o seu habitat, tomei uma decisão. Não vou voltar a fazer os trabalhos de casa nem estudar com ele. Sou diferente da minha mãe em praticamente tudo aquilo que achei que não correu bem comigo, menos na impaciência com que sempre acompanhei os meus filhos nos deveres da escola (já ninguém diz “deveres”, pois não?). Eu tento. De cada vez que perco as estribeiras por ele responder uma coisa completamente ao lado, mordo o lábio e procuro lembrar-me de mim e do pavor que tinha de falhar por saber a tempestade que me aguardava. E, no entanto, também eu sou intempestiva. Será, porventura, a única repetição de padrão que não consigo contrariar. E sei o quanto o magoo, logo a ele, que é tão doce, tão sensível, tão sereno. E de como lhe provoco ansiedade e bloqueios. |
Foi no monte, justamente, que tropecei num podcast da Rita Ferro Alvim (N’A Caravana), onde ela conversava com a Sara Amado, do centro de explicações Nota 20. E eu gostei dela, e fui procurar mais, e enviei-lhe um email onde lhe explicava um pouco sobre o Mateus, sobre algumas dificuldades que tem na escola (o confinamento quebrou-lhe de tal maneira o ritmo – já de si lento – que sinto que nunca mais o recuperou), sobre o facto de a escola não se compadecer com quem tem uma passada mais vagarosa, sobre a tensão que sente, e o medo que tem de falhar. A seguir, ela quis conhecê-lo. Marcámos uma entrevista e ele adorou-a. Depois, ela arranjou-lhe uma “tutora” que vai estar com o Mateus duas vezes por semana: não só a fazer os trabalhos de casa, como também a trabalhar a sua confiança, a transmitir-lhe a alegria de aprender, sem pressões, sem berros, sem zangas. |
Ainda agora começámos esta modalidade (ainda agora o ano letivo arrancou), mas ele já adora a “sua” tutora Joana, ri-se muito com ela, faz as tarefas como se fosse um jogo e, ao contrário de antes, deseja que chegue o dia de fazer os trabalhos de casa, porque aprendeu a olhá-los com outros olhos, e sobretudo sem o meu olhar reprovador. A professora diz que também já o sentiu mais leve, mais determinado, talvez até mais assertivo. É muito cedo para dizer se isto vai resultar, mas, para já, começámos mesmo com o pé direito. |
Este nosso último filho pode ter vários “azares” (entre eles, alguma falta de paciência da nossa parte, que já passámos por vários filhos nas mesmas fases e não nos embevecemos como antes), mas talvez tenha a sorte de ter uns pais que, justamente por já terem passado por tanto, conseguem perceber que, por vezes, é importante delegar em quem sabe as tarefas que manifestamente não sabem fazer. É preciso ter alguma humildade e sentido crítico, para isto. E a experiência, parecendo que não, ajuda muito. Já Saramago escrevia: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”. Às vezes, e sobretudo com os filhos, é preciso olhar, ver, e reparar. E aqui, é mesmo reparar nos dois sentidos: no de observar com atenção, e no de corrigir o que está errado. |
Bom ano letivo, querido caçula. Que consigas ser feliz no teu jeito brando de ser, num mundo que, de brando, tem tão pouco |
Vale a Pena… |
… Ler o livro No Meu Bairro, de Lúcia Vicente, com ilustrações de Tiago M.
Este livro já deu muito que falar. No dia da apresentação, houve uma invasão do espaço por manifestantes de megafone em riste e tom ameaçador. Diziam-se chocados com o conteúdo do livro, que mais não é sobre inclusão e diversidade. Um livro que inclui aqueles que se sentem diferentes, para que percebam que não estão sozinhos. Felizmente, o lançamento foi feito noutro dia, na Fundação Saramago, e com muita polícia à porta para evitar nova tentativa de sabotagem agressiva do grupo que se dizia anti-LGBT, mas que é também antidemocrático porque a censura não tem lugar em democracia.
(Ed. Nuvem de Letras) |
… Assistir ao espetáculo O Meu Pé de Laranja Lima, em Lisboa
É aquele clássico. Acompanhar o Zezé na descoberta do valor da amizade, na capacidade de usar a imaginação para superar as condições mais adversas, a defesa do amor e da ternura como armas para vencer o medo, e a estreita ligação com a natureza. A história é contada mas mantém intacto o seu carácter narrativo — é um livro que está a ser lido, que quer ser lido – e o narrador vai assumindo, aqui e ali, a voz e o carácter de uma e de outra personagem. Até porque, e já o repetiu vezes sem conta, sabe de cor aquelas palavras, ou seja, no coração.
Teatro do Bairro, 30 de setembro a 1 de outubro, às 18h00. Bilhetes a partir de 12 euros |
… Ir ao cinema ver Patrulha Pata: o Super Filme
Quem tem crianças sabe que a Patrulha Pata é um fenómeno. Por acaso o Mateus já não liga há uns anos, mas era uma verdadeira paranóia. Para ter chegado a filme, é porque continua a fazer sucesso. E qual é a história? Quando um meteorito mágico aterra na Cidade da Aventura, a Patrulha Pata ganha super-poderes e transforma-se na Super Patrulha! Para Skye, a mais pequena da equipa, os novos poderes são um sonho tornado realidade. Mas tudo se complica, quando o arquirrival Humdinger foge da prisão e junta-se a Victoria Vance — uma cientista louca obcecada pelo meteorito – para roubar os superpoderes e tornarem-se supervilões. Com o futuro da Cidade da Aventura em risco, a Super Patrulha terá de parar os supervilões antes que seja tarde demais, e a Skye terá de aprender que até o cachorro mais pequeno pode fazer uma grande diferença. Duvido que o Mateus queira ir ver. Já eu, não me importava. Geralmente passo belissimamente pelas brasas quando vou ver filmes infantis (a menos que sejam aqueles clássicos que nos prendem do primeiro ao último minuto e que, às vezes, são quase mais para nós do que para eles). |
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Sónia Morais Santos é autora do blogue “Cocó na Fralda“. Ex-jornalista, tem quatro filhos e dois cães, já passou por vários jornais e revistas em Portugal e publicou quatro livros [ver o perfil completo]. |
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