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Há três anos o meu filho não entrou em nenhum curso. E não foi o fim do mundo… |
Está por dias, a divulgação das colocações da primeira fase da candidatura ao ensino superior público. E o seu filho pode não ficar colocado. Ou pode entrar num curso ou numa universidade que não é nada daquilo que ele quer. A tensão aí por casa pode estar de tal maneira que chegue a ser palpável. Já passámos por isso, e foi dos momentos mais duros da nossa vida familiar. E, afinal, não era preciso aquilo tudo. Porque não entrar logo à primeira não é mesmo o fim do mundo. O texto que se segue tem como objetivo serenar ânimos. Não prometo que consiga, mas não custa tentar… |
Foi há três anos que a bomba rebentou cá em casa. Antes, disso, uma breve contextualização. O meu filho Manel nunca foi um aluno brilhante, daqueles que têm as pautas varridas a 20, e que fica na dúvida se irá para Medicina ou para Belas Artes, porque é genial a tudo. Não. Aqui em casa, de resto, não possuímos espécimes desses. É tudo bastante mediano, e para nós sempre esteve bem assim. Claro que podíamos exigir-lhes mais, e talvez isso nos tivesse poupado ao momento tenso de há três anos (e outros momentos futuros, que não serão seguramente tão angustiantes porque aprendemos a nossa lição), mas acho que sempre lhes passámos a mensagem de que deviam fazer o seu melhor, mas sem pressões nem cobranças. No fundo, o mesmo lema para todas as facetas da sua educação: liberdade com responsabilidade. Faz como achas melhor, acarreta com as consequências depois. |
Bom, quando chegou a hora da verdade, de terminar o 12º ano e candidatar-se à universidade, caiu-nos a ficha. Já tínhamos avisado que as médias do secundário não eram famosas (continuo a achar mal que a média do 10º ano valha exatamente o mesmo que a do 11º e a do 12º, sendo que a maturidade de um miúdo no 10º não tem nada a ver com a maturidade que já tem – em princípio – quando estiver no 12º), mas acho que vivemos numa negação qualquer, reforçada pelos 19 valores que teve no exame de Economia. Só que, certo dia, sentámo-nos juntos a fazer contas, a ver as médias de entrada dos anos anteriores, e a suar do buço. Tu queres ver que ele não entra em nada? |
O clima desses dias não foi bonito. Falávamos do assunto a toda a hora, estudávamos hipóteses, dormíamos mal, discutíamos muito, parecíamos animais encurralados num incêndio. No dia em que se confirmou, foi como se o chão se abrisse e caíssemos todos num buraco qualquer. Pela primeira vez na vida, um dos nossos filhos não tinha uma escola para onde ir. E, se não ia estudar, o que raio ia fazer da vida? |
Como sempre acontece desde que os pais são pais, houve também o fator comparação. Que me perdoem os que garantem ser capazes de nunca o fazer na vida, mas não acredito. Podem até conseguir não o verbalizar, mas é inevitável olhar para o miúdo do lado, aquele com quem o nosso filho sempre cresceu, o filho dos nossos amigos, o vizinho, o colega, o melhor amigo, e pensar: “Este entrou, vai seguir o seu caminho rumo ao ‘sucesso’ (seja lá isso o que for), o nosso não, o que é que falhou aqui?” Ou, pior: “Onde é que nós falhámos?” |
Ao mesmo tempo que olhávamos sorrateiramente por cima do ombro, para ver os outros entrarem nos cursos almejados (ou simplesmente em cursos, ainda que fossem uma treta), cenários catastróficos desfilavam no nosso cérebro de pais à toa: e se ele agora se habitua ao bem bom e nunca mais volta a estudar? E se começa a ganhar dinheiro e nunca mais quer voltar à vida pouco independente de estudante? E se vira um pária, a dormir até às três da tarde, e a sair à noite para chegar caído de bêbado? De repente, nas nossas imaginações, o nosso filho era tendencialmente um perigoso marginal. Assistíamos, oficialmente, ao fim do mundo. |
Depois do choque, foi tempo de respirar. Nós, que nos temos por pais tão descontraídos e serenos, que nunca tivemos qualquer obsessão por resultados escolares de excelência, que nunca fizemos drama de qualquer das fases menos positivas dos nossos filhos, estávamos irreconhecíveis. Era preciso afastar os medos, esquecer as culpas, meter a cabeça em ordem, e traçar um plano que fizesse sentido. |
E foi então que começámos a ler sobre o Gap Year (Ano Sabático, em português). Este é um conceito ainda pouco explorado em Portugal mas, felizmente, com cada vez mais adeptos. Num artigo da Universidade de Harvard, o psicólogo Charles Ducey e William Fitzsimmons e Marlyn E. McGrath, do departamento de admissões da conceituada instituição americana, garantem que um ano sabático pode bem ser a resposta para prevenir o burnout de alunos demasiado ambiciosos que competem entre si para entrar na universidade “certa”, no curso “certo”, no mestrado “certo”, para depois terem a sequência “certa” de empregos. |
Com efeito, e se pensarmos bem, a vida consegue ser bastante estúpida: nascemos, estudamos até aos 18 anos, altura em que… continuamos a estudar, para depois começarmos a trabalhar, eventualmente constituir família, contrair dívidas (casa, carro, o costume), o que fará com que dificilmente possamos voltar a ter oportunidade para parar e conhecer mais do que apenas escola e trabalho. Poderão retorquir com um “ah, qual é o problema, sempre foi assim”, mas parece-me fraco como argumento. As coisas mudam, as mentalidades também, e a verdade é que se há altura na vida para parar, fazer coisas diferentes, conhecer realidades distintas, é justamente na passagem do secundário para a universidade. |
A esta altura, imagino que haja quem esteja a pensar: “isso dizes tu agora, que tiveste um filho que não entrou na universidade à primeira, e teve de arranjar formas de lidar com essa frustração! Isso dizes tu agora, dourando a pílula, como se o gap year não tivesse sido, na verdade, um plano B”. Tudo certo. Foi um plano B, não estava de todo nos nossos sonhos de pais, mas o facto é que acabou por se revelar de tal modo enriquecedor que tenciono sugeri-lo aos outros filhos, mesmo que entrem à primeira. |
Durante o ano de pausa, o Manel começou por ir um mês para São Tomé e Príncipe fazer voluntariado. Procurou sozinho várias opções, fez uma folha de Excel com as várias organizações, os pontos fortes, os pontos fracos, quanto se iria gastar, e acabámos a optar em conjunto pela Para Onde. O Manel iria um mês para a ilha de Príncipe ensinar inglês a crianças e ocupá-las à saída da escola. Foi preciso pagar a viagem e um valor à associação por conta de estadia e alimentação, mas foi das experiências mais extraordinárias que ele podia ter tido. |
O Manel tinha então 18 anos, foi a sua primeira viagem sozinho, foi de avião para São Tomé, dormiu num hotel perto do aeroporto, no dia seguinte apanhou um aviãozinho tipo casca-de-noz, daqueles em que alguém dá um empurrão às hélices (ele que tem algum medo de voar), aterrou em Príncipe, foi recebido por um tipo numa mota, obviamente sem capacete, que segurou na sua mala com uma mão e no guiador com a outra, e lá seguiram viagem para aquela que havia de ser a sua casa no próximo mês. |
Ficámos sem acesso a ele durante um dia ou dois (não tinha rede, não tinha net), e quando conseguimos finalmente falar, ele teve um momento de catarse. Estava numa casa com telhado de zinco, a viver com uma família com muitos filhos e poucas posses, onde as baratas lhe subiam pelas pernas, e o calor misturado com a humidade o fazia dormir pouco e mal. Estava a ser um embate intenso, mas era exatamente essa a ideia. Perceber que o mundo não é só o nosso bairro, a vida não é só o nosso umbigo. Perceber de forma vívida. E isso, por mais Geografia que nos ensinem na escola, só se sente na pele com uma experiência destas. |
Depois de voltar, ainda foi um mês para Nova Iorque, estudar Inglês. Também analisámos várias opções e acabámos por optar pela Education First (EF). Outra grande aventura: estar um mês numa cidade como Nova Iorque, com tudo o que a Big Apple tem para oferecer. |
E agora o leitor poderá estar a pensar: ok, tudo muito bonito, mas para fazer o tal ano sabático tão enriquecedor, é preciso ter condições financeiras à partida, e nem todas as pessoas têm. Por um lado, sim. Estas experiências em concreto que o Manel teve implicaram algum investimento da nossa parte (e a outra parte veio diretamente das economias dele). Mas há muitas outras opções que não implicam qualquer tipo de gasto por parte dos pais. Há programas financiados pela União Europeia, não só para voluntariado internacional como para trabalho além-fronteiras, há pequenas associações que promovem experiências no estrangeiro, tudo sem qualquer custo associado. |
Uma rápida pesquisa online permite perceber como há cada vez mais pessoas a defender este intervalo entre o secundário e a universidade. Não só porque pode efetivamente permitir uma paragem, uma espécie de ganho de fôlego para o que aí vem, como para se ganhar algum amadurecimento, que ajuda muito na hora de escolher o curso (por vezes os miúdos acabam o 12º ano sem fazerem qualquer ideia do que querem estudar ou fazer pela vida fora). |
Foi justamente por ter passado por um ano sabático verdadeiramente transformador que Gonçalo Azevedo Silva decidiu fundar a Associação Gap Year Portugal, que ajuda quem queira, como ele, parar por um ano e enriquecer-se de experiências únicas. Como? Quer com bolsas (a associação oferece até 6.500 euros para quem queira ir conhecer o mundo), quer através de um programa de mentoria. Há um texto publicado no site da Gap Year que vale a pena ser lido porque diz muito sobre este percurso “certinho” que queremos que os nossos filhos sigam, mesmo quando percebemos que estão apenas a seguir nos carris que lhes estão a ser impostos, sem sequer terem a possibilidade de se escutarem, de se conhecerem, de saberem quem são, o que querem e, sobretudo, o que não querem: “Crescer traz-nos uma falsa sensação de urgência e, como diz o ditado, “depressa e bem há pouco quem”. É por isso que, antes de mais, deves dar tempo ao tempo e acima de tudo dá-lo a ti. O que é um ano à sombra de uma vida inteira? Talvez seja a diferença entre o tempo bem empregue e o tempo que se deixou voar.” |
No decorrer deste texto tenho explanado muito a ideia de ir para fora do país (porque julgo ser, em termos de desafio, potencialmente mais interessante), mas se houver receios em enviar as crias para fora, também há muito que se pode fazer por cá. A partir dos 18 anos, a maior parte das ONG e IPSS nacionais aceitam – e agradecem – a inscrição de voluntários. E, claro, também existe a possibilidade de se arranjar um emprego temporário, durante o ano de pausa de estudo, muito útil não só para amealhar uns trocos para quando se entrar na faculdade (e atenção que haverá filhos que não vão querer seguir o ensino superior, e esse será um tema para uma outra newsletter), como até para se dar o devido valor ao trabalho. |
Além do voluntariado e do aperfeiçoamento do Inglês, o Manel aproveitou para ler muito, trabalhar, e estudar para os exames, para uma nova candidatura. Apaixonou-se por Política, tornou-se militante de um partido, e no ano seguinte, entrou num curso e numa faculdade que, não sendo os mais desejados, já cumpriam com os mínimos que tinha imposto para si próprio. Foi só dois anos mais tarde que conseguiu entrar exatamente no curso e na faculdade que queria. Pelo meio, mais livros, mais amadurecimento, e a candidatura como cabeça-de-lista, a uma Junta de Freguesia de Lisboa. |
Hoje, estudante de Economia do ISEG, autor de um podcast sobre política, voluntário e membro de uma Assembleia de Freguesia de Lisboa, diz com convicção que aquele foi o ano mais importante da sua vida, em que deu a si próprio o tempo que nunca tinha tido. O “desaire” de não ter entrado no tempo “certo” na universidade transformou-se, enfim, numa fortuna. Pôde parar, analisar o futuro, conhecer novos mundos, novos caminhos, novas oportunidades, e até novas pessoas. Abrir a cabeça, expandir horizontes. |
Por vezes, é preciso dar um passo “atrás” para depois se continuar a andar para a frente. E o “atrás” está propositadamente entre aspas porque não tem de ser um recuo. Pode ser apenas um compasso de espera que, desde que bem aproveitado, pode bem revelar-se das melhores decisões da vida. Bem melhor – acreditem – do que entrar “a martelo” num curso qualquer, só para cumprir metas que nós estabelecemos e que, muitas vezes, não fazem sentido nenhum. |
Vale a pena… |
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Escrito por Tiago Marques e Gonçalo Azevedo Silva, criador da associação Gap Year Portugal, são as aventuras de dois jovens de 18 anos que percorrem 25 países. Uma viagem pelo mundo mas, sobretudo, uma viagem ao interior de cada um e à descoberta de novas possibilidades. Um ano que dificilmente seria possível se tivessem, simplesmente, seguido nos carris para o passo seguinte: a universidade.
(ed. Convite à Música, 2013) |
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É uma associação sem fins lucrativos, de Aguiar da Beira, que faz um trabalho bonito de promover e apoiar atividades para os jovens, em áreas diversas como a educação e formação intercultural, o voluntariado e a participação na sociedade, a mobilidade internacional, a consciencialização do cidadão europeu, entre outras. O meu filho Martim foi, no ano passado, com 16 anos, para a Estónia e garantiu que foi uma experiência que o mudou. |
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Ensinam línguas em 52 destinos de 23 países diferentes. Pode bem ser uma belíssima opção para quem escolhe fazer um Gap Year: estudar línguas num país estrangeiro, com toda a abertura de mentalidades que a experiência permite. |
Visitar o Quake, em Lisboa |
Parece que não tem nada a ver com o tema (e as sugestões não têm que estar relacionadas com o assunto da newsletter, mas desta vez pareceu-me que os pais ficam tão aflitos com isto que não fazia mal nenhum deixar mais umas achegas), parece que não tem nada a ver, dizia, mas tem. Se sentem que a vossa vida levou um grande abanão porque o vosso filho não entrou no curso pretendido ou – sequer – em qualquer curso de qualquer universidade, vão juntos ver o que é um abanão a sério. O Quake oferece uma experiência imersiva e interativa sobre o Terramoto de 1755 que não vai esquecer. O simulador, o vídeo-mapping e os efeitos especiais vão dar-lhe a real dimensão do horror que se terá vivido naquele dia 1 de Novembro. Comparado com isto, a situação do seu filho é um passeio no parque (e é, a sério). |
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Sónia Morais Santos é autora do blogue “Cocó na Fralda“. Ex-jornalista, tem quatro filhos e dois cães, já passou por vários jornais e revistas em Portugal e publicou quatro livros [ver o perfil completo]. |
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