Esta newsletter é um conteúdo exclusivo para assinantes do Observador. Pode subscrever a newsletter aqui e fazer aqui a sua assinatura para assegurar que recebe as próximas edições. |
Marcelo foi mesmo humilhado? Vai passar a ser mais vigilante? Costa reforçou mesmo o seu poder? Ou passou a correr riscos desnecessários? Mas que importa isso tudo quando o PS se eterniza no poder? |
|
|
Há outra forma de colocar esta questão, e é a seguinte: nesse dia António Costa pensou no que era melhor para o país ou no que era melhor para si? Pensou no melhor governo da nação ou na melhor forma de prolongar o domínio do PS? |
Não creio ser muito difícil responder a estas questões. Um ministro tão debilitado como João Galamba, um ministro que vai estar como nenhum outro sob o fogo da comissão de inquérito da TAP, um ministro que continua com muitas explicações por dar, a um ministro nestas condições falta peso político, tempo, cabeça, para levar a bom porto dossiers como o da privatização da TAP, o da modernização da ferrovia, o da escolha do novo aeroporto, para só citar os mais relevantes. Aliás nem Costa parece ter a certeza de que ele seja um bom ministro – está apenas “convicto de que, tal como se revelou um excelente secretário de Estado da Energia, também se irá revelar um excelente ministro das Infraestruturas”… |
Por outras palavras: face à dimensão das tarefas pela frente seria recomendável encontrar um par de mãos mais seguras e menos instáveis, até porque se percebeu desde o início que Costa não considerava que Galamba pudesse ser um substituto à altura de Pedro Nuno Santos, pois logo quando o escolheu retirou da tutela do ministério a pasta da Habitação, levando para a mesa do Conselho de Ministros a figurinha que bem conhecemos. |
Em contrapartida António Costa acredita que, com a sua decisão, encurralou o Presidente da República, tornando claro perante o país que quem manda é ele e que Marcelo pode falar, falar, falar, mas no fim do dia é o primeiro-ministro que decide. É certo que o Presidente, ao estar sempre a comentar tudo e todos, permitiu que se desvalorizasse o poder da sua palavra, mas ao reafirmar da forma crua como o fez as suas competências para escolher ou demitir ministros, António Costa voltou a forçar uma mudança de hábitos no regime, como já sucedera em 2015 quando formou governo sem ter ganho as eleições. Significa isso que acabou “a chamada magistratura de influência do Presidente da República”, como defende Helena Matos? Ou, pelo contrário, foi Marcelo que “recuperou uma enorme relevância política”, como sustenta João Miguel Tavares? Ou perderam todos neste braço de ferro, nós incluídos, como escreveu António Barreto? |
Depois de tantos se terem enganado nas previsões que foram fazendo ao longo da última semana, eu prefiro esperar para ver. A minha convicção é que Marcelo não tem nem a estrutura psíquica, nem um círculo político que lhe permitam fazer a partir de Belém aquilo que outros presidentes fizeram a alguns governos, com destaque para aquilo que Mário Soares fez durante a segunda maioria absoluta de Cavaco Silva. Há tarefas políticas que exigem mais do que popularidade para as prosseguir sem desfalecimento, pelo que é com cepticismo que encaro a promessa de mais vigilância. |
Ao mesmo tempo também não creio que possamos esperar o que quer que seja de quem em São Bento se preocupa mais com estar no poder, nem que por apenas mais um dia, do que se apoquenta com a desesperança que se apoderou do país. |
Defendi nesta mesma newsletter, ainda a semana passada, que este é um governo que vive mais de sondagens e focus group do que com preocupações de mudar o país, e esta semana voltámos a vê-lo no seu esplendor a passear-se por Braga, onde ministros e secretários de Estado organizaram nada menos de 90 eventos para dizerem que temos “um governo + próximo” quando o que temos é um executivo em contínuas acções de agitação e propaganda. |
À chamada só faltou, por óbvio embaraço público, o ministro Galamba, que só apareceu para o Conselho de Ministros, furtivo e calado, menos do que uma sombra de antecessores que fizeram da pasta das Obras Públicas (agora rebaptizada “das Infraestruturas”) uma alavanca central na transformação do país. Recordo naturalmente o seu criador, Fontes Pereira de Melo, e o mais célebre e popular dos ministros de Salazar, Duarte Pacheco. Mas é na mesma cadeira que essas figuras ocuparam que Galamba vai continuar sentado, pelo menos nos tempos mais próximos, enredado em mentirinhas e temente das próximas fúrias. |
É assim que se faz e se celebra a política em Portugal. É assim também que o PS ocupa o poder em Portugal, como de novo lembrou Rui Ramos. Vale mais o curto prazo, o dia seguinte, do que um futuro visto sempre como demasiado longínquo; celebram-se mais depressa os “taticistas geniais” do que quem tem os olhos no longo prazo; e permite-se que a política seja aquilo que António Costa tem feito dela, um simples exercício de implacável ocupação do poder, e de eternização no poder. |
| A sinceridade de um intelectual (e mais um regresso a Paulo Tunhas) |
|
Espero que não tenha sido o último texto de Paulo Tunhas a ser publicado em livro – seguramente não será – mas a apresentação que escreveu para Regresso da URSS, de André Gide, tem todas as qualidades luminosas da sua prosa. Luminosas e prescientes. Notemos: “Até a velhinha alucinação da URSS renasce, aqui e ali, com um objecto substituto mais ou menos geograficamente idêntico. Quanto mais não seja por isso, vale ainda a pena ler hoje em dia o Regresso e os Apontamentos e, se possível, a literatura produzida em seu torno. É o presente que o pede. E o mal continua profundo e surpreendentemente difícil de reconhecer, por mais que dele saibamos infinitos e minuciosos detalhes”. |
O Regresso e os Apontamentosa que ele se refere são dois livrinhos de André Gide, um escritor francês Prémio Nobel que nos idos de 1930 foi um compagnon de route dos comunistas e, nessa condição, visitou a União Soviética. Dessa viagem resultou um livro – Regresso da URSS – onde revelava, sem estados de alma, a sua “alegria profunda” e, ao mesmo tempo, as suas críticas à pátria de Estaline. |
Estes dois livros, agora disponíveis em Portugal reunidos num só volume, não nos revelam nada que já não soubéssemos. Afinal André Gide, nesse tempo, ainda alinhava com o discurso das virtualidades da URSS e ainda acreditava na bondade da doutrina de Marx e Lenine – apenas estava desconfortável com o que pensava ser um retrocesso no processo revolucionário. Mesmo assim a sinceridade do seu testemunho em o Regresso, e a sua determinação em revelar tudo aquilo que sentira, nomeadamente quando constatara o monolitismo do sistema e a absoluta falta de liberdade (semelhante, escrevia de forma tão corajosa como premonitória, à da Alemanha nazi: afinal tratavam-se de duas formas de totalitarismo), valeram-lhe uma enxurrada de críticas dos intelectuais comunistas, os que até ao fim teimaram na sua cegueira. Os Apontamentosforam a sua resposta, porventura ainda mais reveladora da dimensão da sua desilusão ao conhecer o “país do sovietes”. |
Por isso, apesar de aqui não encontrarmos nada de novo sobre o que foi o “socialismo real”, encontramos neste livro duas outras coisas muito valiosas. A primeira chama-se nobreza: mesmo quando aderimos uma fé, no caso a fé no comunismo de André Gide, é possível não fechar os olhos, é possível estar atento, é possível romper com as utopias, mesmo as que parecem fatalmente libertadoras, como era o caso da utopia comunista, essa fatal e terrível ilusão. A segunda é perceber como, mesmo diante de evidências que “ferem os olhos”, os que se deixam encadear pela ideologia se transformam, como o odioso Louis Aragon, em candidatos a censores, no limite a proto-torcionários. Como escreve na apresentação o nosso já saudoso Paulo Tunhas, “a ilusão do comunismo – a aparência transcendental que parece imprescindível para fazer sentido de tudo e que define para muitos o ideal da razão política – continua ainda poderosa hoje em dia, embora mais latente do que manifesta”. Não posso estar mais de acordo, e por isso mesmo gostei de ler um livro que, parecendo desactualizado, é bem actual. |
| Mais leituras: o que não podemos esquecer |
|
Quem me acompanha, e quem acompanha esta newsletter, conhece seguramente a admiração que tenho por Anne Applebaum, a jornalista e historiadora que tem escrito sobretudo sobre a Europa de Leste e a antiga União Soviética. Nas últimas semanas estranhei a sua ausência das páginas da The Atlantic, a revista onde actualmente escreve, mas agora percebi o porquê: esteve de novo na Ucrânia, entrevistou de novo Volodymyr Zelensky, visitou de novo as trincheiras onde a guerra prossegue e o resultado desse seu trabalho faz a capa da mais recente edição da revista. The counteroffensive, texto que assina em conjunto com o editor da The Atlantic, Jeffrey Goldberg, é de leitura obrigatória. Primeiro, pelo que revela sobre o modo como a Ucrânia está a lutar e se está a preparar para a contraofensiva que todos esperamos (eu pelo menos espero, voltei a falar disso esta semana no Contra-corrente: Será que a contraofensiva ucraniana já começou?). Depois, pela clareza com que expõe não só as condições para uma vitória ucraniana, mas também de todos nós. Sim, porque “The future of the democratic world will be determined by whether the Ukrainian military can break a stalemate with Russia and drive the country backwards—perhaps even out of Crimea for good.” Se puderem (o texto é reservado a assinantes da revista) não deixem de ler. |
|
Um outro texto que me chamou a atenção esta semana saiu na The Economist e que fez capa nas edições de todo o mundo, menos nas distribuídas na Europa continental, no Médio Oriente e em África, onde a atenção se focou na Turquia (um tema a que voltarei). Trata-se de um alerta para a forma como a generalidade dos governos – dos Estados Unidos à China, da Alemanha ao Reino Unido – têm deixado de prestar atenção à forma como as dívidas públicas têm disparado. Em Governments are living in a fiscal fantasyland a revista defende que podemos estar a caminhar para uma situação explosiva porque as dívidas acumulam-se ao mesmo tempo que aumentam as despesas com o Estado Social (nomeadamente com o sistema de pensões) e não há coragem política para fazer certas reformas. Pelo que há razões para estarmos preocupados: |
Politicians need to get real, fast.Public debts are in danger of becoming unmanageable, especially if interest rates stay high. Every step up in borrowing hampers governments’ ability to respond to the next crisis. And there are limits to how far spending can be controlled. Politicians could dial down their promises to pensioners or ensure that their role in the green transition is not larger than it needs to be. But there is little public appetite for austerity, and spending is bound to rise as populations age. More defence spending and green investment are essential. |
Talvez haja quem diga que não é connosco, pois temos “contas certas”. Mais devagar: em 2022 a dívida pública reduziu em percentagem do PIB, beneficiando da inflação em alta e da recuperação económica pós-pandemia, mas aumentou 3,3 mil milhões de euros em valor absoluto, como hoje recorda no Observador João Caetano Dias. Como diz o outro, “não há milagres”. |
| Uma abadia como nenhuma outra |
|
Pouco terei a acrescentar sobre a cerimónia de coroação de Carlos III, que milhões de pessoas em todo o mundo seguiram ontem em directo pela televisão. Há muitos e bons textos onde se explica quase tudo, ou mesmo tudo, pelo que optei por sugerir apenas uma visita virtual à Abadia de Westminster, onde teve lugar a cerimónia. Visualizar Inside Westminster Abbey and its Coronation secrets permite-nos conhecer melhor um lugar único no mundo porque ali se conserva uma das mais antigas tradições da Europa – em nenhum outro local se realiza desde 1066, ou seja há quase mil anos, uma mesma cerimónia, em concreto a coroação do monarca. Há locais onde a tradição ainda é a tradição, com todo o seu valor simbólico, mesmo quando alguns estranham a sua persistência – mas muitos mais a celebram, como ontem pudemos de novo confirmar. |
| Elogio do nascer do Sol |
|
Quando era adolescente o nascer do Sol (com que sonhava sobretudo nos longos verões das infindáveis férias escolares) era algo quase inalcançável. Afinal, quem se levantava da cama àquela hora? Com o tempo os meus dias passaram a começar mais cedo, muitas vezes antes do Sol nascer (mais: por regra antes do Sol nascer). Descobri assim que há uma luz mágica no princípio do dia que, mesmo sendo mais efémera do que a do fim do dia, tem o mesmo ou ainda mais encanto – e a vantagem suplementar de ser mais exclusiva. |
Vivendo eu muito perto do Cabo da Roca (não foi por acaso que mantive alguns anos uma crónica chamada Extremo Ocidental), visitei-o algumas vezes a essa hora do dia em que o dia se começa a substituir à noite, e a fotografia acima é de uma dessas visitas, uma experiência que recomendo a quem gosta do encanto de uma solidão que o turismo contemporâneo nos roubou. Corrijo: não roubou, ocupou. Na verdade aquilo que noto que muitas pessoas se queixam – “já não há locais sem turistas”, “já nem portugueses conseguimos ser” – quase sempre só é verdade se escolhermos o mais fácil e o mais óbvio, e os horários do pôr-do-sol. Optando pelos alvores da manhã é fácil reencontrar a solidão e, mesmo nos locais onde apostaríamos que o fim do dia é que vale a pena, o início do dia surpreende-nos, e surpreende-nos numa maravilhosa solidão (há uma excepção, pelo menos, a esta regra: o miradouro de Santa Luzia, em Lisboa, mas um dia falarei dele). Saltem pois da cama mais cedo os que se queixam do excesso de turistas e vejam como podem ser maravilhosas as nossas paisagens, e também as nossas cidades, à hora a que ainda se dorme. De passagem, queixam-se menos de quem apesar de tudo vai justificando o nosso crescimento. |
Voltando ao Cabo da Roca, deixo-vos abaixo uma outra imagem, quase com a mesma perspectiva, mas de um fim de dia, e também sem pessoas. Consegui-a durante os dias da pandemia, em que esta localização ficava a “walking distance” de minha casa e, por isso, acessível com o argumento de que andava a passear os cães. Nos dias que correm esta solidão seria impossível, nos dias de então tive de suportar, nas redes sociais, a fúria dos fundamentalistas do “não saias de casa”. Passados estes anos, agora que declararam o fim da pandemia, só lamento que ninguém pareça querer fazer o balanço desses dias de pânico e reclusão. É pena, como diria o nosso Presidente. E sendo peno gozemos ao menos o que este país tem para nos dar, mesmo que só ao nascer do Sol. |
|
Tenham um bom domingo. |
Gostou desta newsletter? Quer sugerir alguma alteração? Escreva-me para jmf@observador.pt ou siga-me no Facebook, Twitter (@JMF1957) e Instagram (jmf1957). |
Pode subscrever a newsletter “Macroscópio” aqui. E, para garantir que não perde nenhuma, pode assinar já o Observador aqui. |
José Manuel Fernandes, publisher do Observador, é jornalista desde 1976 [ver o perfil completo]. |
|