À memória do Paulo Tunhas

Até quinta-feira, a história da TAP parecia permitir várias versões, mas uma só conclusão. Havia quem achasse que o ministro das Infraestruturas violou regras e procedimentos, e mentiu; havia quem achasse que foi apenas “trapalhada”. Mas uns e outros concluíam a mesma coisa: o ministro não podia ficar. Um dos que assim concluíram foi o presidente da república. O primeiro-ministro, porém, olhou para a história, não se sabe em que versão, e concluiu que o ministro tinha de ficar. Para não haver dúvidas que era António Costa quem decidia contra tudo e contra todos, João Galamba teve até de apresentar um pedido de demissão.

A encenação teve o efeito previsto. Os comentadores do regime tinham-se permitido exigir a cabeça do ministro, para não perderem o que julgaram ser uma onda fácil. Mas António Costa falou, e ei-los de pernas para o ar, a louvarem em coro, com o excesso de zelo de quem assim tenta reparar uma falta, a “coragem” do primeiro-ministro. Já era “habilidoso” como Ulisses: agora, é também “corajoso” como Aquiles. Falta ainda descobrir que é “profundo” como Platão e “elegante” como Alcibíades, mas haverá oportunidade.

Sim, o primeiro-ministro foi audacioso. Tinha de o ser, porque João Galamba é apenas o nome de uma maneira de governar que não é dele e de agora, mas de todo o poder socialista e de sempre: a arrogância, o desprezo por regras e procedimentos, a promiscuidade e a mentira são as marcas de água de um grupo político que, não por acaso, se deu bem com José Sócrates. Se António Costa deixasse cair Galamba por causa da TAP, depois de ter deixado cair o seu antecessor pela mesma razão, iria em breve ter de deixar cair o sucessor de Galamba, porque o poder socialista só tem um jeito de lidar com a TAP, que é o mesmo com que lida com tudo. Há muito tempo que o PS normalizou o “irregular funcionamento das instituições”: é apenas uma descrição, em linguagem constitucional, de como as instituições funcionam quando o PS está no poder.

António Costa tinha portanto de ser audacioso. E podia sê-lo, como se confirmou pelas reacções. Foram extraordinárias: o presidente da república chamou solenemente o país, às oito da noite, para dez minutos de comentário televisivo; e os líderes do PSD e da IL fizeram saber que tinham ido almoçar sem convidar André Ventura. Tal como Costa calculara, o presidente e as oposições têm mais medo do que ele da grande medida de disciplina institucional prevista no regime, que é a “dissolução”. Uns porque ainda estão traumatizados pela dissolução de 2021, outros porque a propaganda socialista lhes impôs a ideia de que o único problema do país é a má criação de Ventura, e todos porque receiam a gratidão dos pensionistas para com um governo que se prepara para partilhar com eles o lucro fiscal da inflação. António Costa pode ser tão “corajoso” quanto quiser.

O PS é a máquina política mais implacável que a democracia portuguesa conheceu desde 1976. Depende do poder, de que os seus agentes fizeram carreira, e só acredita no poder, que exerce sem escrúpulos. O regime, como se percebe, não tem força para lhe resistir. Em 2011, só a crise da dívida parou Sócrates. Desde então, a sociedade portuguesa ficou mais fraca, enquanto o poder político passou a estar garantido pelo BCE. Por isso, não se convençam de que eles estão desejosos de se ir embora, e que se lhes faz uma grande maldade deixando-os lá estar. É uma fantasia de fracos. Que resta ao país que gostaria de ser outra coisa? Emigrar, ou descobrir a coragem sem a qual nunca haverá alternância. A audácia do poder convida à audácia da oposição.

PS: Eu podia falar aqui da imensa tristeza do desaparecimento de Paulo Tunhas. Mas em vez disso, quero falar da alegria que foi tê-lo podido ler aqui, no Observador, todas as semanas, durante quase nove anos, e da alegria que foram também todas as conversas de vinte anos de amizade. Obrigado, Paulo, até sempre.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR