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Entre o perigo do liberalismo e o demónio do comunismo |
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Com a Guerra Fria, após a crise de Berlim em 1948, Salazar pôde encaixar a sua ditadura na resistência ocidental à expansão soviética. A Guerra Fria permitiu-lhe até voltar a criticar em público o liberalismo e a democracia. Para Salazar, no século XX, o “Ocidente”, cristão e liberal, passara a estar confrontado com a sua negação, sob a forma do “comunismo”. Os liberais haviam-se identificado com um modelo de sociedade assente no respeito jurídico pelos direitos das pessoas e na produção da riqueza através da iniciativa individual. Salazar não punha isso em causa. O que punha em causa era o aferro liberal a uma série de preconceitos políticos – como o parlamentarismo e o direito de oposição – que, segundo ele, serviriam apenas, nas novas circunstâncias do século XX, para abrir as portas do Estado aos inimigos desse modelo de sociedade. |
Não havia portanto quaisquer vantagens em submeter o poder à competição entre partidos num mercado eleitoral. Para o decorrente problema de representação da “Nação” no Estado, Salazar dispunha do “corporativismo”. As “corporações” captavam os indivíduos nos seus grupos sociais, e eram mais resistentes à agitação e aos conflitos fomentados por razões políticas. Os interesses podiam ser representados por corporações e o bem comum melhor defendido por uma autoridade executiva independente. |
O melhor resumo da segunda fase da “doutrina” salazarista é do escritor alemão Winfried Martini num livro de 1955. O governo português promoveu logo a tradução do volume, o que de certo modo o oficializou como compêndio do pensamento salazarista. Para Martini, um conservador anti-nazi, o salazarismo era um exemplo do “Estado autoritário”. O “Estado autoritário” opunha-se tanto à democracia, como ao totalitarismo (comunista ou fascista). Era no século XX, segundo Martini, a única forma de garantir o “Estado de Direito” e “a liberdade individual, não política” (entendida como “o direito do indivíduo” a uma vida “não dominada pelo Estado” e defendida contra “as arbitrariedades do Estado”). |
Deste modo, a doutrina salazarista, que antes de 1945 tinha sido entendida como a filosofia de uma revolução anti-liberal, pôde depois ser confundida com o ideário de um regime de defesa da “civilização ocidental” contra a subversão comunista. Por isso, alguns dos líderes democráticos europeus ou americanos desculparam Salazar, admitindo que talvez Portugal não pudesse produzir, em democracia, uma maioria anti-comunista, como os outros países da Europa ocidental. Era mesmo assim? Em 1975, nas primeiras eleições livres e com sufrágio universal, o país provou o contrário. Mas Salazar nunca se interessou por isso. |
De facto, a sua ditadura nunca foi apenas um expediente de Guerra Fria, como por exemplo as ditaduras militares da América Latina nos anos 1960 e 1970. Mesmo depois de 1945, Salazar continuou a ventilar o seu grande cepticismo em relação à validade da democracia ou da forma ocidental de democracia liberal. Em 1958, depois da queda da IV República francesa e numa nova era de autoritarismo em França, sentiu-se à vontade para esclarecer o jornal Le Figaro: “Não acredito no sufrágio universal, porque o voto individual não tem em conta as diferenças humanas. Não acredito na igualdade, mas na hierarquia”. Daí que, “se o liberalismo consiste em construir toda a sociedade sobre as liberdades individuais, então considero de facto que o liberalismo é uma mentira. Não acredito na liberdade, mas nas liberdades. A liberdade que não se inclina diante do interesse nacional, essa liberdade chama-se anarquia e destruirá a nação”. Não se tratava apenas de resistir ao comunismo. |
Mas Salazar também deu por vezes um sentido relativo aos conceitos políticos. Admitiu assim que em Inglaterra estava muito bem o parlamentarismo e o sistema de partidos, mas que em Portugal, não. “Legislasse eu em Inglaterra, e a minha obra seria completamente diferente”. E porque é que a sua obra tinha de ser “diferente” em Portugal? Em 1963, num artigo que escreveu para uma revista inglesa, fez questão de descrever a “maneira de ser dos portugueses”. Segundo ele, embora “generosos”, os portugueses estariam marcados por um “extremado sentido individualista” que os deixava desconfiados perante a autoridade, e refractários a qualquer “tentativa de alinhamento comunitário”. Tinham um “apurado sentido crítico”, mas que lhes servia sobretudo para descortinarem “os aspectos negativos das pessoas e das coisas”. Eram quase incapazes de “colaborar”. |
Daí, a impossibilidade de governar sem a “proibição de organização de partidos políticos” e a “instituição da censura oficial à imprensa”. Mais do que o pessimismo antropológico de algum catolicismo, estava aqui uma variante da tese de que faltava “educação cívica” ao povo. Era uma ideia corrente entre as classes instruídas. Antes de 1926, os republicanos já a tinham usado para fazer uma república sem sufrágio universal. |
Perante a falta de “educação” dos portugueses, cabia ao Estado ser o “representante da Nação”, constituir “a mola real da vida e progresso do país”. O Estado de Salazar não pretendia ser um Estado partidário, como tinha sido o Estado republicano, nem um Estado produtor, como queriam os socialistas. Era antes um Estado concebido como independente da sociedade ou de qualquer grupo (partidos, igreja, forças armadas). O Estado devia criar infra-estruturas materiais e jurídicas para facilitar e orientar a actividade dos indivíduos e dos grupos, organizados, através das corporações, grémios e sindicatos oficiais, numa articulação permanente com o Estado. |
Mas o Estado não devia substituir-se aos “particulares” na “actividade económica”, porque impediria então a criação dos “valores sociais autónomos que são indispensáveis ao progresso”. Não era aqui que Salazar se afastava dos antigos liberais. Era no que vinha a seguir. Para garantir a sua independência, o Estado tinha de assumir uma forma autoritária, centrada num poder executivo livre da chicana parlamentar e dotado de instrumentos discricionários para controlar a actividade política. |
Na sua estrutura, a “doutrina” salazarista não se diferenciava muito das doutrinas de “terceira via” que, perante o desafio comunista e fascista ao liberalismo, se tornaram populares a partir dos anos 1930, tanto à direita, como à esquerda. Na oposição anti-salazarista, António Sérgio elaborou algo de análogo, se não nos objectivos, na configuração: entre o “homem autoritário” e o “homem liberal”, Sérgio imaginou um “terceiro homem”, um “reformador” ao mesmo tempo liberal pelos seus objectivos e autoritário pelos seus meios. Sérgio admitia assim a “legitimidade de ditaduras”. É verdade que tinham de ser “temporárias”, isto é, não deviam pretender constituir um “regime”, como era o caso da ditadura salazarista. Mas ao deixar implicitamente ao ditador a decisão sobre o termo da ditadura, Sérgio acabava por se distinguir do salazarismo, naquilo que dizia respeito à liberdade política, fundamentalmente pela retórica liberal. |
A “doutrina” salazarista teve duas funções políticas precisas: a primeira, foi afastar a ideia de que o regime era uma simples improvisação oportunista; a segunda, indicar que a ditadura não evoluiria – nem para uma democracia liberal, com vários partidos em competição eleitoral, nem para um sistema totalitário, com um “movimento” determinado em politizar toda a sociedade e abolir o princípio jurídico dos direitos do cidadão. Deixou assim a fascistas e a liberais a possibilidade de descobrirem razões para justificarem o conformismo com uma ditadura que nunca os poderia satisfazer inteiramente. Muitos irritaram-se. |
Na segunda metade da década de 1940, durante o pós-guerra, quando a inflação, o racionamento e a burocracia corporativa justificaram muita frustração, a maledicência e as conspirações envolveram a “esquerda”, mas também a “direita”. O governo recorreu à polícia, mas também à persuasão. A maioria dos descontentes, como seria de esperar, descobriu as razões necessárias para não passar certos limites. Porque mesmo que o salazarismo estivesse destinado a não os satisfazer, também não satisfazia os inimigos deles. Marcello Caetano tocou nesse ponto ao dizer a Salazar, em 1948, que o Estado Novo era “um mal menor que se suporta, mas a que não se adere”. Mas se há regimes que morrem das suas contradicções, também há regimes que vivem das suas contradicções. O salazarismo foi um deles. |
Na última edição do programa E o Resto é História, conversei com o João Miguel Tavares sobre o os estados papais (e como duraram mil anos) e os vários microestados na Europa. Ouça aqui o podcast. |
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Rui Ramos é historiador, professor universitário, co-autor do podcast E o Resto é História [ver o perfil completo]. |
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