Charlie Munger, num discurso em 2007, conta uma história (provavelmente apócrifa) sobre o Professor Max Planck, considerado o pai da física quântica. Após ter recebido o prémio Nobel, Planck terá ido a várias universidades repetir a mesma palestra, ao ponto de o seu motorista já a ter memorizado. Um dia o motorista, aborrecido, pergunta se pode ser ele a dar a próxima palestra, já que a sabe de cor. Planck acede.
No fim da palestra sobre mecânica quântica, alguém na audiência terá feito uma pergunta difícil, ao que o palestrante respondeu, apontando para Planck, sentado na fila da frente: “Estou espantado que numa cidade como Munique alguém me faça uma pergunta tão elementar. Vou deixar que o meu motorista responda”.
Munger conta esta história para distinguir entre dois tipos de conhecimento: o “conhecimento real”, assente em estudo aprofundado e experiência prática, e o “conhecimento de motorista”, que não é mais do que o papaguear de lugares-comuns escutados ou lidos noutros locais por pessoas que são muito boas a convencer outras de que sabem do que falam.
Em nenhum lugar do nosso país se assiste a maiores demonstrações de conhecimento de motorista que nos painéis de debate televisivos. Isto nem é ainda uma crítica: é apenas uma constatação.
Um estudo recente indica que passaram pelo comentário político nas televisões portuguesas, entre 2000 e 2017, 224 homens e 49 mulheres (82% vs. 18%). Uma média de 15 pessoas diferentes por ano. Chocante, mas não tanto.
Também não surpreenderá ninguém que quase 100% desses comentadores tenham idades superiores a 40 anos – e a grande maioria está mesmo acima (ou bem acima) dos 50.
São, na grande maioria das vezes, políticos de longa data, para os quais são reservadas as melhores tribunas, de onde comentam mesmo quando os temas fogem aos seus domínios de especialidade. Estão no ar há décadas e são diversos apenas e só na medida da sua inclinação política.
Aos “políticos que comentam tudo” vêm-se juntando, nos últimos anos, os “jornalistas que comentam tudo”, ficando o debate público de temas relevantes assim dividido entre pessoas que, por mais experientes e respeitadas que possam ser, não conseguem, como não consegue ninguém, arrebanhar conhecimento real suficiente para fazer destes debates mais do que um conjunto daquilo a que se usa chamar “larachas”.
Uma sociedade em que o debate público é dominado por políticos e jornalistas, com todos os méritos individuais que lhes possam caber, é uma sociedade insuficiente.
Foi neste contexto que, em abril deste ano, num programa do Prós e Contras onde um grupo de jovens foi convidado a dar a perspetiva da juventude sobre o futuro do país, lancei o seguinte desafio: se temos em Portugal jovens qualificadíssimos, cheios de conhecimento real, porque é que estes só são convidados para falar na qualidade de “jovens”, em nome da “juventude”? Porque é que não são convidados para discutir política internacional, o Sistema Nacional de Saúde, os números do défice ou o futuro da Segurança Social?
Qual é a desculpa dos media para convidarem sempre os mesmos, há décadas, para falar de todos os assuntos? Porque é que aos representantes de partidos políticos e de clubes de futebol é dado o monopólio do microfone?
As desculpas que ouvi então, em on e em off, foram as seguintes: não sabemos quem são esses jovens; os jovens não querem participar; os jovens não estão preparados.
Respondi de imediato com uma promessa: se as desculpas são essas, então vamos fazer uma lista de 100 jovens com conhecimento real indisputável em várias áreas do saber.
A ideia foi bem acolhida, recebi dezenas de mensagens de pessoas a falarem-me da sua experiência e a voluntariarem-se para a partilhar. A oportunidade e necessidade desta lista, enquanto desafio à comunicação social para nos passar o microfone, mas sobretudo enquanto afirmação de uma vontade geracional em participar no debate público, tornavam-na uma prioridade.
Falei com os meus colegas dos Global Shapers, que abraçaram esta ideia de corpo e alma e, todos juntos, com o apoio e curadoria de membros destacados e reconhecidos nas suas áreas de saber, chegámos aos nomes que vão compor esta primeira fornada do projeto “100 Oportunidades”: cem oportunidades de ouvirmos coisas novas, de aprendermos com vozes diferentes, de debatermos com profundidade e sem a “tudologia” que vem preenchendo o debate público de conhecimento de motorista.
100 Oportunidades de pessoas de esquerda e de direita, mas sem vidas partidárias. De homens e de mulheres, das ciências e das artes, de sotaques e gostos e interesses diversos, de funcionários públicos e de empreendedores, de portugueses e de imigrantes e de emigrantes.
Este projeto não nasce como um ataque às personagens que vemos e ouvimos na televisão há mais de 20 anos. Todas elas têm conhecimento real sobre alguma coisa, e algumas até falam, por vezes, sobre assuntos que dominam.
Mas os tempos estão a mudar e uma sociedade cujo debate público lhe chega sempre através das mesmas vozes perde a habilidade de lidar com a diferença. Quando isso acontece, sujeitamo-nos a um de dois perigos: o do desinteresse, que se traduz em abstenção, em desinformação, em perda do espírito crítico; e o da ânsia desbragada pela primeira coisa nova que venha quebrar o status quo, o que se traduz na chegada de extremismos e fundamentalismos de má ventura.
Vamos iniciar uma nova década, com desafios particularmente excecionais, da emergência climática, às emergências de novas e velhas ameaças à nossa democracia, e a um Estado Social, duas coisas que temos como garantidas, mas que não o são.
Para vencermos esses desafios precisamos de todos, velhos e novos, com partido e sem partido, com padrinhos e sem padrinhos, diferentes mas pares, sentados à mesa, de microfone na mão, num debate que se quer público, franco e sem linhas vermelhas.
Em janeiro de 2020 apresentaremos os primeiros 100 voluntários desta iniciativa, na esperança humilde de que sejam apenas os primeiros de muitos que se chegarão à frente para renovar o debate público com conhecimento real, com perspetivas de longo prazo e com total liberdade.
Esta lista é um desafio claro, público, aos donos do microfone. Os jovens estão aqui, os seus currículos são públicos, a sua vontade é expressa. A partir do próximo mês, caber-nos-á a todos perguntar: e agora, qual é a desculpa?
João Marecos tem 28 anos, vive em Londres, é advogado em Portugal e em Nova Iorque, onde estudou com uma bolsa Fulbright, e co-fundador da Ockham Legal. Integrou os Global Shapers de Lisboa em 2014. Em 2019, publicou o livro “Carta ao Cavaleiro de Nada”, uma história para crianças sobre Fernando Pessoa que consta do Plano Nacional de Leitura. É um dos autores da página “Os Truques da Imprensa Portuguesa”.
O Observador associa-se aos Global Shapers Lisbon, comunidade do Fórum Económico Mundial para, semanalmente, discutir um tópico relevante da política nacional visto pelos olhos de um destes jovens líderes da sociedade portuguesa. Ao longo dos próximos meses, partilharão com os leitores a visão para o futuro do país, com base nas respetivas áreas de especialidade. O artigo representa, portanto, a opinião pessoal do autor enquadrada nos valores da Comunidade dos Global Shapers, ainda que de forma não vinculativa.