Quais foram as questões sociais que marcaram o ano de 2023 em Portugal? Quais as áreas sociais mais noticiadas e porquê? O que podemos melhorar em 2024? São estas as perguntas a que procurarei responder neste artigo de opinião pessoal suportado por vários artigos e estudos nos quais o leitor atento e interessado pode encontrar a hiperligação de acesso ao longo desta minha reflexão.
Quase todas as análises ao longo do ano de 2023 no âmbito social destacam que Portugal tem um Estado Social degradado e uma economia pouco dinâmica que sejam capazes de responder às necessidades da população em geral. O país está a ficar cada vez mais pobre em comparação com a generalidade dos países europeus.
Como introdução à análise que me proponho aqui apresentar convido o leitor a recordar os dados divulgados pelo Inquérito às Condições de Vida e Rendimento: o número de pobres e/ou em risco em Portugal de tão gritante na sua expressão foi memorizado pela população – quase 4 milhões de pessoas. O mesmo inquérito refere que também a pobreza infantil em Portugal aumentou, um dado alarmante para o futuro.
O número de pessoas a viver em situação de pobreza explica que em parte a população envelhecida, pobre e com baixas qualificações tenha preferência por soluções políticas que se traduzem na transferência e benefícios económicos diretos, que a apoie de forma imediata e, talvez por isso, veja como secundário os investimentos na economia do desenvolvimento do país e na economia do conhecimento, os quais apenas produzem resultados a longo prazo. Esta visão da população é, naturalmente, legítima, as pessoas estão desesperadas por satisfazer as suas necessidades mais básicas e há muito que a forma de os governos lidarem com a pobreza em Portugal tem sido esta: políticas paliativas de mera transferência de fundos sem resolver o problema de fundo. Este é um cenário de “pescadinha de rabo na boca” para o poder político, a solução para o aumento da pobreza é injetar dinheiro através das prestações sociais para aliviar as tensões, protelando soluções estruturais. Ora, este cenário faz naturalmente com o que número de pessoas em risco de pobreza aumente. E a receita repete-se: mais dinheiro para aliviar os pobres, menos planeamento e investimento em adequadas políticas sociais que quebrem os ciclos de reprodução da pobreza.
As reflexões em torno das causas e das soluções para os problemas sociais em Portugal deviam ser primordiais para o poder político. Embora, muitas vezes, talvez pela complexidade dos temas ou impreparação governamental, se opte por um discurso em que é preferível continuar a viver numa realidade ilusória, como se Portugal tivesse duas dimensões paralelas, a lembrar os melhores filmes de ficção científica: um o Portugal do povo e outro o país dos nossos governantes. Os problemas do país são profundos, reais e sentidos pela generalidade da população no seu dia-a-dia. Das principais áreas de preocupação destaco cinco: habitação, migração (emigração e imigração), educação, saúde e a ação social.
1Habitação
No Portugal do povo, 89% da população iniciava o ano de 2023 exigindo investimento na Habitação, de acordo com uma sondagem realizada à população pelo ICS/ISCTE e publicada. A maioria dos inquiridos concordava que havia uma crise na habitação, aliás, havia, há e tudo indica que continuará a agravar-se. Recentemente um estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos “Barómetro da Habitação” revela que a população sente que encontrar uma casa acessível ao bolso de cada um é cada vez mais difícil. Muitos temem ser obrigados a sair da casa onde vivem.
A resolução deste problema implica recuperar um atraso de longos anos de desinvestimento numa política pública de habitação. O resultado é um número crescente de famílias afastadas das cidades, a viver cada vez mais longe dos seus postos de trabalho, num país assimétrico no seu desenvolvimento económico e social. A crise da habitação este ano atingiu ainda com maior intensidade a classe média, mas a falta de habitação também afetou alunos deslocados (muitos deixaram os seus cursos a meio), professores, migrantes que são atraídos para a cidade para responder a trabalhos em setores de serviços. Voltámos este ano a ouvir falar da expressão “cama quente”, agudizou-se a sobrelotação e foram notícia famílias a viver em autocaravanas, lojas e garagens transformadas em habitação permanente. Isto em resultado da reduzido número de construção nova a preços sociais e de fraca prioridade dada pelo Estado a recuperação do património imobiliário público. No Portugal dos governantes a prioridade foi apresentar um pacote de medidas Mais Habitação que não agradou à generalidade e essencialmente não produziu efeitos na vida prática da população. Mais um vez o Portugal dos governantes teve como foco o setor privado, atribuindo-lhe o papel de “bode expiatório” do cenário que hoje vivemos. Mas junta-se, ainda, um património imobiliário degradado, onde a população que tem casa passa frio: a pobreza energética. Em Portugal segundo informação disponibilizada pela Estratégia Nacional de Longo Prazo para o Combate à Pobreza Energética 2022-2050 (ENLPCPE 2022-2050) há entre 660 a 680 mil pessoas que vivem numa situação de pobreza energética severa, o que significa que pertencem a “agregados familiares em situação de pobreza cuja despesa com energia representa +10% do total de rendimentos”.
As pessoas em situação de sem-abrigo aumentaram, prevendo-se o agravamento em 2024, hoje identificam-se 10.773 pessoas nesta situação, o que representa um aumento de 78% em quatro anos. Em 2018 eram 6044. Lisboa como capital que disponibiliza serviços de apoio tem sobre si o efeito de atração, a oferta naturalmente, atrai pessoas em situação de sem-abrigo que não têm resposta nas suas localidades de origem. Ora, por isso Lisboa viu aumentar as tendas na cidade, zonas como a Almirante Reis, Santa Apolónia e Gare do Oriente são locais de massiva pernoita. Os imigrantes também contribuíram para o aumento deste fenómeno, em parte o resultado da generosidade da nossa política migratória que não é acompanhada pelas condições de proteção social. Também a gestão das pessoas em situação de sem-abrigo em Portugal é assimétrica no território: a oferta de apoio ganha expressão nas cidades e isso funciona como um íman. Parece, pois, que a política social que tinha como finalidade a diminuição das pessoas em situação de sem-abrigo fracassou como nos explicou Alexandre Homem Cristo no seu artigo de opinião.
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Migração (emigração e imigração)
Em Portugal a migração foi, igualmente, tema que preencheu o debate na opinião pública no ano de 2023. Não nos orgulha, certamente, que no ano de 2022 emigraram 71.717 nacionais e residentes em Portugal. Os dados disponíveis referentes a 2021 revelam que 47.6% dos emigrantes detinham um nível de escolaridade superior. O país está a perder “muitos dos seus melhores” estudantes para a emigração e não apenas após a licenciatura. A este propósito convido-vos a ler a entrevista de José Ferreira Gomes, reitor da Universidade da Maia e ex-secretário de Estado do Ensino Superior e da Ciência concedida à FFMS.
Recebemos mais imigrantes em 2023, no total os dados indicam 781 mil, sendo expectável que atualmente já se tenha atingido 1 milhão de imigrantes. Estes imigrantes, segundo dois relatórios que destaco para leitura – Indicadores de Integração de Imigrantes 2023 e retrato da população estrangeira e dos fluxos migratórios em Portugal –, vão contribuindo para o saldo migratório positivo, aumentado as receitas para a segurança social e atenuando os indicadores de envelhecimento da população. Mas outras questões foram deixadas para reflexão: Quem é a população estrangeira em Portugal? Que condições laborais e de vida têm? Como têm evoluído as concessões de nacionalidade e de títulos de residência? E qual o perfil de quem entra e sai do país?
Assistimos igualmente no ano de 2023 a um debate sobre as consequências da alteração da política migratória. Esta política tem-se tornado mais facilitadora da permanência em território nacional, mas não foi acompanhada da dimensão da integração social: muitos imigrantes acabam a viver situações de irregularidade tornando-se invisíveis para os serviços. Ora, se desejamos e precisamos de imigração temos a obrigação de proporcionar condições de acolhimento: área que foi preterida. Tal esquecimento agudizou o debate polarizado e contribui para a fratura das sociedades. A generalidade dos portugueses sem preconceitos ideológicos, de racismo ou xenofobia está efetivamente preocupada com a imigração. Os portugueses têm defendido a necessidade de saber acolher com dignidade, mas também estão preocupados com a regulação da imigração, estas perceções vieram a público através do estudo intitulado “Imigração Sustentável num Estado Social de Direito”.
Terminámos o ano com a tão anunciada extinção do SEF e a criação da AIMA, conjuntamente com mais seis organismos distintos. O cenário divulgado após a extinção do SEF traduziu-se em notícias que davam conta de centros de acolhimento esgotados, dezenas de pessoas que dormiam no chão da zona internacional do aeroporto de Lisboa enquanto aguardavam pela resposta da nova Agência para o Asilo e Migrações ou dos tribunais.
3 Educação
A mobilidade social em Portugal possível pela via da educação é baixa, resultado de um escola pública que não está planeada para potenciar as correções das desigualdades sociais de partida das famílias de origem dos alunos. Portugal perpétua os ciclos de pobreza, gerações de baixas qualificações que se herdam. Terminámos o ano com a divulgação de dois indicadores preocupantes: 1) os resultados do PISA, os piores desde 2006 e 2) os resultados das provas de aferição indiciando dificuldades de aprendizagem entre os alunos do 2º, 5º e 8º anos.
Portugal nunca pode aspirar competir de igual para igual com economias amplamente desenvolvidas como a de alguns países europeus, mas pode, pela via da educação investir no esbatimento dessa diferença. Portugal deve concentrar-se no que fez de melhor enquanto economia baseada no conhecimento altamente qualificado. Isto significa investir na educação, na investigação e na inovação, criar mais empregos de elevada qualidade e assegurar que os trabalhadores tenham as competências necessárias para os preencher, garantindo, igualmente, capacidade financeira para reter os seus talentos. A aprendizagem ao longo da vida é um ingrediente vital.
A (re)industrialização do país, focando-se em setores para os quais temos condições de formar quadros capazes e competentes é uma estratégia que deve ser abraçada por Portugal. Isto, em coordenação com uma regionalização de facto responsável pode lançar as bases para que o país possa sair do pântano em que se encontra.
4 Saúde
No que respeita à saúde Portugal assistiu-se em 2023 a este caricato fenómeno: apesar da redução dos indicadores de procura dos serviços públicos de saúde, a capacidade de oferta de resposta revelou-se perfeitamente caótica e desorganizada, parecendo quase patéticos os esforços para transmitir a aparência de uma situação de normalidade. Naturalmente, que a procura publicamente não satisfeita orientou a sua “escolha” para o setor privado, em grande medida com o suporte de seguros de saúde, cujo crescimento tem vindo a ser significativo.
O cenário é complexo e para um melhor entendimento convido-vos a ler o Relatório sobre o Estado da Saúde na União Europeia . Do Relatório indicado saliento como principal preocupação os desafios de Portugal ao nível da saúde mental e o fraco investimento em cuidados continuados. No plano da saúde mental, o documento considera imperioso que as reformas sejam focadas na prevenção, tratamento e reintegração de pacientes, com a preocupação de travar a estigmatização associada a esta patologia. Terminamos o ano com o alerta da Ordem dos Médicos sobre a falta de pedopsiquiatras nos hospitais públicos. Os transtornos mentais em crianças e adolescentes são altamente recorrentes e persistentes, sendo frequente o desenvolvimento de comorbidades e comprometimentos crónicos na vida adulta. Os problemas de saúde mental são a principal causa de incapacidade relacionada à saúde em crianças e adolescentes em todo o mundo e são um desafio de saúde global do século XXI.
5 Ação Social
Os sistemas de proteção social enfrentam uma série de desafios significativos em resultado do aumento dos riscos sociais e da necessária cobertura por parte do Estado Social.
Os sistemas de proteção social podem para além do que já foi apresentado neste artigo, investir em novos modelos de intervenção social. Tais modelos devem ser operacionalizados através do atendimento social disponibilizado às populações. Este é o momento de modernizarmos a ação social em Portugal, adaptar a sua intervenção à evolução do mundo do trabalho, às novas estruturas familiares e às mudanças demográficas de hoje e das próximas décadas.
A ação social junto das populações tem um papel fundamental a desempenhar, em conjugação com outros instrumentos políticos, no combate à exclusão social e na promoção da inclusão social. É o momento de pensarmos em desenvolver novos modelos de intervenção social, menos assistencialistas e mais modernizados, isto é, modelos que conjuguem apoios financeiros (assistencialismo), trabalho de proximidade com os indivíduos e famílias, envolvendo para isso setores empresariais, sociedade civil e o poder local. Modelos centrados na prevenção, promovendo medidas ativas em vez de passivas e proporcionando incentivos e vias para a (re)integração no mercado de trabalho e na sociedade: as pessoas têm o direito de se sentir com utilidade social, as pessoas merecem participar em projetos na medida das suas capacidades, sempre que isso lhes for possível.
Tendo sido aprovada a regulamentação e os respetivos estatutos para instalação da Ordem dos Assistentes Sociais é imperioso que a especificidade do acompanhamento a prestar pelos profissionais da área não seja aviltado ou deturpado pela intervenção de indivíduos tecnicamente impreparados para o desempenho destas relevantes funções e que se limitem a perpetuar uma ação meramente administrativa de assistencialismo.
Esta tem sido a nossa realidade nos últimos anos: consolidámos a vulnerabilidade social em que vive a população portuguesa. Portugal, no seu Estado, nas suas empresas e nas suas famílias, está a ficar para trás: endividados, fragmentados, impreparados para os desafios do futuro. Portugal está em dificuldades sociais – fraca economia e aumento da pobreza. Os portugueses merecem um melhor Fado.