Em 2019, Marcelo Rebelo de Sousa definiu como objectivo político a erradicação da situação de sem-abrigo. O compromisso foi anunciado pelo Presidente da República ao lado da ministra Ana Mendes Godinho, estando sustentado num plano de implementação a 4 anos (até 2023) liderado pelo governo, mas com o apoio (e monitorização) da Presidência. Em 2019, os registos apontavam para que estivessem 7100 pessoas em situação de sem-abrigo. Pretendia-se, portanto, reduzir este número progressivamente até 2023.

Uma coisa são as promessas, outra bem diferente é a realidade. Pelos indicadores de monitorização, rapidamente se percebeu que a meta fixada para 2023 não seria alcançada. Pior ainda: em vez de uma melhoria, a situação viria a agravar-se. Em 2020, o número de pessoas em situação de sem-abrigo subiu para 8200 (+1100 face a ano anterior). Em 2021, atingiu 9600 (+1400 face a ano anterior). Em 2022, são já 10770 (+1170 face a ano anterior). Para 2023, os dados não estão ainda compilados, mas a tendência de aumento deverá manter-se. De acordo com a Comunidade Vida e Paz, o aumento mais recente do número de sem-abrigo ronda os 25%.

Nesta triste história, há duas constatações inevitáveis. A primeira é a incapacidade do Estado em encontrar soluções eficazes para uma população particularmente frágil. Não desvalorizo a complexidade do fenómeno que se visava erradicar, mas essa complexidade não justifica que se falhasse por tanto. Após planos de implementação plurianuais e milhões de euros investidos, a situação não só não melhorou como se agravou — em vez de se avançar, retrocedeu-se. Recentemente, Marcelo Rebelo de Sousa redefiniu objectivos e baixou a fasquia: a meta temporal passou para 2026 e o objectivo já não é a erradicação mas sim a redução no máximo possível. Ou seja, mais tempo para menos ambição. Nas entrelinhas das palavras do Presidente da República, o que se ouviu foi uma confissão de incapacidade.

A segunda constatação é o fracasso político do governo numa área de intervenção considerada prioritária. No início de Dezembro, foi o próprio Presidente da República a reconhecê-lo, admitindo que a estratégia do governo não resultou. Os dedos apontam-se à pandemia, numa repetição do que já se ouviu na Educação ou na Saúde: afinal, a pandemia tem costas largas e serve sempre para o discurso político mascarar as suas falhas. Ora, como será fácil de ver, foi muito mais o que correu mal: fixaram-se metas irrealistas, desenharam-se intervenções insuficientes, definiu-se um investimento escasso para a dimensão do desafio. E os resultados falam por si: quando se agrava um problema que se pretendia erradicar, o fracasso não é menos do que total.

A política está cada vez mais reduzida a um produto artificial de comunicação, onde imperam os jogos de sombras e onde as narrativas se valorizam mais do que os factos. Felizmente, mesmo no meio da confusão cacofónica, subsistem evidências que nenhuma narrativa consegue ocultar: qualquer político consegue fazer promessas, mas só os políticos competentes é que as conseguem cumprir. E, no combate à pobreza e à situação dos sem-abrigo, o governo prometeu, mas não cumpriu — e, na verdade, até permitiu o agravamento da situação. Eis algo que valeria a pena discutir nas infindáveis horas de debate televisivo sobre a situação política: o país está pior porque, passados 8 anos, o PS tem um longuíssimo cadastro de fracassos na governação.

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