Ontem, o comissário das comemorações oficiais dos cinquenta anos do 25 de Abril deixou de ser um comentador socialista das televisões, entretanto promovido a ministro, e passou a ser uma historiadora, autora de várias publicações sobre a matéria. Foi um passo no bom sentido. Falta agora dar outro, igualmente importante: acabar com a tutela governamental das comemorações, que se mantém. Se é preciso que a comissária responda perante um órgão de soberania, porque não a presidência da república? É uma questão de decoro.

Vamos ser claros: há muitas razões para desconfiar desta comemoração. Eis duas dessas razões: é governamental, quando, como toda e qualquer comemoração séria, deveria ser nacional; e é promovida por este governo, cuja equipa já se celebrizou por ser uma das mais exclusivistas e facciosas da história deste regime. Mas além dessas, há esta razão, que talvez seja a maior de todas: é mais uma comemoração, e há muito tempo que comemorar o 25 de Abril tem significado pouco mais do que distorcer o 25 de Abril, ao ponto de hoje ser a história mais mal contada do nosso passado. Os cinquenta anos eram uma ocasião para limpar a estrebaria. Mas é pouco provável que assim seja.

Comemorar o 25 de Abril foi sempre, para a esquerda comunista, um meio de identificar o 25 de Abril de 1974 com a sua tentativa de tomada do poder em 1975, o chamado PREC. Por isso, precisaram de apagar muita gente da foto. Apagaram, por exemplo, o general Spínola, sem cuja ruptura com Marcello Caetano nunca teria havido “movimento dos capitães”, e apagaram a direita liberal, que forneceu a maior parte do pessoal político da nova situação pós-ditatorial em 1974. O 25 de Abril não resultou simplesmente de uma revolução da esquerda, mas da ruptura da maior parte da direita, já liberal e europeísta, com o governo de Marcello Caetano, quando se convenceu que, dentro da ditadura, seria impossível o fim das guerras em África e a transição para uma democracia de tipo europeu ocidental. Que isto foi assim, vê-se por uma simples enumeração de quem ocupou os cargos a seguir ao dia 25. É verdade: Mário Soares e Álvaro Cunhal entraram no governo. Mas o presidente da república era o general António de Spínola; o primeiro-ministro era Adelino da Palma Carlos, um republicano conservador; o seu braço-direito, como ministro-adjunto, era Francisco Sá Carneiro, fundador do PPD-PSD; no conselho de Estado, estava Diogo Freitas do Amaral, fundador do CDS e um dos autores do programa do primeiro governo provisório. Nas manifestações do dia Primeiro de Maio de 1974, não foi apenas a esquerda que fez a festa, foi toda a gente, porque muito pouca gente em Portugal, da direita à esquerda, tinha qualquer nostalgia da censura à imprensa e da polícia política do Estado Novo.

No entanto, há mais de quarenta anos que todos os anos a esquerda e particularmente a esquerda comunista aproveita o feriado para contar mais uma vez a história como se os únicos militares envolvidos no golpe tivessem sido aqueles que depois se filiaram na esquerda e na extrema-esquerda, ou como se os únicos movimentos populares depois da revolução tivessem sido aqueles que eram dirigidos pelos partidos de esquerda e de extrema-esquerda, ou como se desde o princípio o objectivo da revolução tivesse sido a imposição de uma autocracia militar colectivista, à Terceiro Mundo, de modo que a evolução no sentido de uma democracia pluripartidária e de uma economia social de mercado de tipo europeu ocidental parecesse uma traição ao “espírito de Abril”. É assim que temos uma história em que há Otelo Saraiva de Carvalho, mas não há Spínola; em que há sindicatos e manifestações de esquerda em Lisboa, mas não há a Igreja Católica e as grandes manifestações populares que no norte do país, durante o “Verão quente” de 1975, obrigaram o poder comunista a recuar; em que há o fim da guerra em África, mas não há a imensa tragédia de populações entregues à repressão e à pilhagem de bandos alinhados com a União Soviética e a China Comunista.

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O ascendente que a esquerda, e especialmente a esquerda comunista, pôde alcançar em Portugal nos meses a seguir ao 25 de Abril não teve a ver com a sua influência na sociedade portuguesa, onde depois houve força suficiente para lhe resistir, mas com a protecção que aos partidos de esquerda concederam umas forças armadas determinadas em acabar rapidamente com a guerra em África, o que só se pôde conseguir nos termos da esquerda, isto é, através de um simples trespasse de poder para as guerrilhas marxistas. Daí, o PREC. E daí, também, a história horrível dos cerca de 15 milhões de habitantes das antigas colónias: foi-lhes retirada a cidadania portuguesa, sem direito de opção a menos que fossem descendentes de portugueses europeus, e nunca puderam votar livremente sobre o seu destino. Quando comemoramos a nossa liberdade, deveríamos lembrar sempre aqueles que nada tiveram para comemorar, a não ser a variação de algemas e de mordaças.

A maior e mais importante comemoração do 25 de Abril ocorreu no seu primeiro aniversário, em 1975. Nesse dia, houve eleições para a Assembleia Constituinte. Portugal já estava no meio de uma conspiração para a tomada do poder pelo Partido Comunista, patrocinada por parte dos militares revolucionários. Mas os conspiradores não tiveram força para adiar as eleições, nem para mudar o sistema eleitoral anteriormente definido. As eleições foram assim livres e limpas – as primeiras eleições da história de Portugal em que ninguém contestou o  resultado. A participação foi a mais elevada de sempre. O sentido do voto foi claro: ¾ dos votantes escolheram partidos que, apesar de preferirem modelos sociais e económicos diferentes, defendiam a democracia pluralista de tipo ocidental. Acima de tudo, as eleições revelaram a diversidade do país, que a norte votou à direita e a sul à esquerda, segundo antigas divisões culturais e sociais. Quem quis perceber, percebeu como a democracia pluralista de tipo ocidental era e é, num país assim heterogéneo, a única maneira de coexistirmos sem ditaduras ou guerras civis.

Os caminhos que levaram à democracia foram muitos e contraditórios: passaram por Otelo, mas também por Spínola; pela esquerda, mas também pela direita; pelo que acabou bem, como a democratização de Portugal, mas também pelo que acabou mal, como o horrível abandono das antigas colónias à ditadura e à guerra. Comemorar tudo isso, ao mesmo tempo, não é obviamente possível. Comemorar é, fatalmente, ser parcial, porque ninguém comemora aquilo de que não gosta e aqueles com quem não concorda. Mas aquilo de que não gostamos e aqueles com quem não concordamos também fizeram parte desta história. A esquerda tem negado isso, e usado as comemorações para, contra os factos, se declarar autora e portanto dona da democracia em Portugal, numa tentativa patética de menorizar e de excluir quem pensa de outra maneira. Infelizmente, é improvável que o actual poder socialista, apostado no controle do Estado e da sociedade, veja na comemoração outra coisa senão outra oportunidade de controle, desta vez da memória histórica.

É possível contrariar esta dominação sectária, claro. Por exemplo, promovendo outras comemorações, focadas nos acontecimentos e personagens que o actual poder socialista já disse querer esquecer: é o caso do movimento de 25 de Novembro de 1975 que levou à neutralização da chamada “esquerda militar” e viabilizou a transição democrática. Talvez faça sentido, como uma questão de equilíbrio. Mas faria muito mais sentido se, entre todos, nos puséssemos de acordo para deixar o 25 de Abril ao cuidado da história, isto é, tratá-lo como matéria de conhecimento, e não de apropriação facciosa. Seria a maneira de compreendermos o que aconteceu. Mais ainda: seria a maneira de despertar interesse por um acontecimento fundamental e fascinante, mas há demasiado tempo escurecido pelo tédio e pela monotonia das mesmas deturpações de sempre. O 25 de Abril, aos cinquenta anos, merecia melhor.