«Não percebo que estigmatizem o 25 de Novembro, porque o 25 de Novembro é a continuação do 25 de Abril». Estas são palavras do antigo Presidente da República, General António Ramalho Eanes, em entrevista à jornalista Fátima Campos Ferreira, palavras de incompreensão perante o esquecimento do 25 de Novembro de 1975. Elas remetem-nos para uma realidade incompreensível, mas efetiva, em que viveu a democracia portuguesa ao longo dos últimos anos – uma realidade que infelizmente nos mostrou que há na nossa democracia quem ainda queira impor o pensamento único e proibir a livre expressão sobre todos os temas. .

O 25 de Novembro foi durante muito tempo um desses temas proibidos. Enxotado, inclusive, para o esquecimento histórico. Dizia-se que evocá-lo tratava-se de incitar à divisão dos portugueses. Sempre foi, e continua a ser, a forma dos partidos de esquerda condicionarem e tentarem definir o que deve ou não ser discutido pelos moderados. Mas como é que um dia decisivo para a consolidação da nossa democracia pluralista pode ser fator de divisão? Só se essa acusação viesse de quem não queria uma democracia pluralista em Portugal, como Álvaro Cunhal, que, entrevistado pela famosa jornalista italiana Oriana Fallaci, declarou perentoriamente: «não aceitamos o jogo das eleições». A legitimidade eleitoral era, assim, substituída pela «dinâmica revolucionária». Quem não a acompanhasse não teria qualquer legitimidade para exercer o poder, ainda que tivesse ganho eleições livres. Felizmente, o 25 de Novembro terminou com as aspirações de novos totalitarismos. E fê-lo de forma magnânima: o mesmo PCP que se insurgiu contra o 25 de Novembro «contrarrevolucionário» não foi por ele destruído, mas sim integrado no sistema da nossa democracia parlamentar. Hoje, todos concordamos no papel fundamental do PCP para o nosso jogo democrático, seja a nível nacional como autárquico. Também isso se deveu ao 25 de Novembro e aos militares moderados que o executaram.

Hoje, depois de 49 anos, o 25 de Novembro vai ser comemorado na Assembleia da República. É uma conquista. Foi uma conquista que tomou o seu tempo, e que reflete a maturidade da nossa democracia já cinquentenária. Como Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, sinto um orgulho tremendo neste feito, porque foi em Lisboa que se deu a primeira grande cerimónia pública, não militar, de homenagem ao 25 de Novembro de 1975. Precisamente há um ano atrás estávamos a homenagear os dois militares comandos falecidos naquele dia, o tenente José Coimbra e o furriel Joaquim Pires, num emotivo momento que encheu o Salão Nobre dos Paços do Concelho.

Nessa cerimónia senti que fazia realmente falta valorizar o 25 de Novembro – dar a dignidade à data que ela própria merece, celebrando-a tal como deve ser celebrada, como a continuação e a consagração de Abril. Como a consagração das promessas inauguradas em Abril de 1974. É também com essa missão que voltamos hoje aos Paços do Concelho para assinalar o dia com uma homenagem especial: ao líder operacional do 25 de Novembro a quem tanto devemos, o então tenente-coronel Jaime Neves, na pessoa da sua esposa Delfina Neves.

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Jaime Neves foi uma daquelas figuras que a História quis que nela deixasse a sua marca. Nele não vemos a figura «ideal», com que tantas vezes nos enganamos por procurá-la nos seres humanos de carne e osso. Em Jaime Neves vemos, não o ideal, mas, como diria Ortega y Gasset, o arquétipo, «as coisas de acordo com a sua inelutável realidade». Neste sentido, Jaime Neves foi sem dúvida um arquétipo. Desde logo, foi a imagem inelutavelmente real de uma geração de combatentes que se sacrificaram, que prescindiram dos seus anos de juventude, e que várias vezes foram esquecidos. Foi, ainda, o arquétipo do líder: do líder que, no 25 de Novembro, avançou pela Calçada da Ajuda e cercou o Regimento da Polícia Militar, fazendo-se obedecer mesmo depois de sofrer duas baixas, sabendo perfeitamente que qualquer percalço, qualquer falta de disciplina, poderiam fazer cair o país numa guerra civil.

No entanto, Jaime Neves é hoje, acima de tudo, uma personificação das conquistas que os portugueses alcançaram com o fim do Estado Novo: da liberdade e da democracia. Ou, por outras palavras, de Abril e de Novembro; da liberdade que se abriu com Abril e da democracia que se consagrou em Novembro. Jaime Neves, que a 25 de Abril neutralizou os homens do Major Pato Anselmo na Avenida Ribeira das Naus, continuaria a empreitada a 25 de Novembro na Calçada da Ajuda. Na sua pessoa Abril e Novembro complementam-se, tal como deve ser.

A Jaime Neves e à sua geração, que em grande medida fez o Portugal democrático, um obrigado saberá sempre a pouco. Resta-nos, para fazer justiça à sua memória, cuidar da sua obra. Cuidar da nossa democracia, todos os dias. É essa a maior homenagem que podemos fazer ao 25 de Novembro, e, com este, ao 25 de Abril de 1974.