A necessidade, tantas vezes apontada, de regenerar e reformar o nosso sistema político não nos pode, em momento algum, fazer esquecer a dimensão das conquistas do nosso sistema democrático.
Uma das mais extraordinárias conquistas alcançadas pela nossa democracia foi a consagração na nossa Constituição, dos direitos económicos, sociais e culturais e a afirmação da ideia de que não é possível construirmos uma sociedade verdadeiramente democrática e livre sem a efetivação desses mesmos direitos. Não é possível alcançarmos uma sociedade na qual a igualdade de oportunidades seja uma realidade, sem que os cidadãos vejam concretizados o direito à saúde, à habitação, ao trabalho, à segurança social, à família, ao acesso à cultura.
Se é verdade que estamos ainda longe, enquanto comunidade, de poder afirmar que somos uma sociedade em que nenhum português fica para trás no desenvolvimento dos seus projetos pessoais, sociais, familiares e culturais, não é menos verdade que o direito à saúde encontra-se, no essencial, garantido pelo sistema nacional de saúde.
Mas, não obstante os tremendos desenvolvimentos que foram assegurados na qualidade da prestação de cuidados de saúde em Portugal nas últimas quatro décadas, temos ainda um longo caminho a percorrer.
Temos de assumir como prioridade, que nenhum português tem de enfrentar as tormentosas listas de espera para poder ter acesso a cirurgias, a consultas de especialidade e a médico de família.
Temos de dar confiança e autonomia aos gestores hospitalares, acabando com a “ditadura” do Terreiro do Paço, que impõe a assinatura do Ministro das Finanças para qualquer decisão de gestão nas unidades de saúde com tremendos custos de eficiência para o sistema.
Temos de dar passos decisivos no sentido de que os cidadãos entrem no sistema de saúde através dos cuidados de saúde primários de proximidade e não pelos congestionados e ineficazes serviços de urgência dos hospitais.
Temos de assumir a prevenção e a promoção de hábitos de vida saudável como uma prioridade estratégica nacional, enquadrando nos curriculuns escolares desde o ensino básico, conceitos que contribuam para a promoção da literacia em saúde.
A pandemia global que estamos a enfrentar, sem prejuízo da heroica resposta que tem sido dada pelas unidades de saúde e pelos seus profissionais, coloca novos desafios no modo como devemos encarar os sistemas de saúde.
Subitamente a economia mundial foi paralisada não por força de uma crise económica, social, política ou financeira, mas por uma crise sanitária. Ora, esta surpreendente circunstância, conduz a que saúde deixe de poder ser considerada apenas como um direito dos cidadãos e um dever de prestação dos Estados nacionais, para passar necessariamente a ter de ser encarada como uma questão transnacional e uma variável fundamental no desenvolvimento económico.
Não podemos, assim, em matéria de políticas de saúde apenas bastar-nos com políticas nacionais. Não só porque são neste contexto insuficientes, como se demonstram desajustadas à magnitude da resposta aos desafios que nos são colocados. Não é possível, no contexto das políticas de saúde, encontrar uma solução para uma crise que é simétrica e que afeta todos os países, independentemente do seu nível de desenvolvimento económico, apenas com respostas nacionais.
A vacina ou a solução terapêutica que todos ansiamos para a Covid-19, por exemplo, não é suscetível de ser alcançada no quadro nacional, não só por exigir investigação de tremenda dimensão, mas porque o custo e a pressão que uma vacina ou terapêutica para a Covid-19 significará nos orçamentos nacionais será incomportável para vários países europeus e, certamente, para Portugal.
Impõe-se, desta forma, que a União Europeia, que tem considerado os temas relacionados com os sistemas de saúde como estritamente nacionais abordando-os apenas lateralmente a propósito dos cuidados de saúde transfronteiriços, passe a encarar a saúde como um tema comunitário, de resto como Organização Mundial de Saúde tem vindo a chamar à atenção ao longo dos últimos anos.
Naturalmente que não se defende que as opções sobre o funcionamento e arquitetura dos sistemas, que como é sabido, assumem na Europa tradições nacionais fortíssimas, passem a ser considerados temas de natureza comunitária. Todavia, ignorar os tremendos impactos que a saúde tem no desenvolvimento da economia europeia, no mercado interno e mesmo na segurança interna da União Europeia, e que, por isso, devem merecer respostas comuns, designadamente no que respeita à investigação e financiamento de vacinas e soluções terapêuticas, é ignorar o óbvio.
Sem prejuízo da necessidade de se encontrarem respostas europeias aos desafios que se colocarão aos sistemas de saúde na sequência do Covid-19, subsistem desafios de caráter nacional que obrigam a uma visão estratégica de longo prazo.
O consenso nacional que tem existido em torno do serviço nacional de saúde (apenas interrompido por episódicas invetivas de natureza ideológica como a que assistimos a propósito da aprovação da Lei de Bases da Saúde e das parcerias público-privadas), tem, todavia, de ser reinterpretado e compreender os novos desafios que enfrentaremos enquanto comunidade.
Não é a centralidade do serviço nacional de saúde no domínio do nosso sistema de saúde, ou mesmo o papel por ele desempenhado na mitigação das desigualdades entre os portugueses, que deve ser colocado como vértice central de uma visão estratégica de longo prazo para a saúde. Ninguém em Portugal coloca hoje em causa a centralidade do serviço nacional de saúde ou o seu papel determinante na construção de uma sociedade mais equitativa. Apenas discursos despudoradamente político partidários e ideologicamente datados dos anos 90 é que procuram, por vezes, trazer essas reminiscências de debates historicamente datados, construindo divisões artificiais e espúrias na sociedade portuguesa.
O que é hoje necessário neste domínio é dar resposta à necessidade de modernização das infraestruturas e equipamentos de saúde, à valorização dos profissionais de saúde, ao reforço da prioridade na inovação e na investigação, bem como à afirmação das várias indústrias da saúde como um fator de competitividade da nossa economia.
O nosso sistema de saúde tem de ser capaz de modernizar os seus sistemas de informação potenciando o que a utilização do big e small data pode proporcionar, designadamente na definição de modelos preditivos que permitam potenciar ganhos em saúde e impactar positivamente na qualidade de vida dos cidadãos. Não pode o nosso sistema de saúde, por outro lado, deixar de encarar as potencialidades oferecidas pela telemedicina, bem como não pode ignorar a necessidade de ter em conta, nos modelos de financiamento das unidades de saúde, as melhoras práticas internacionais baseadas no value base healthcare.
Ao invés de continuarmos amarrados a discursos ideológicos sem adesão à realidade dos cidadãos que desesperam nas listas de espera do serviço nacional de saúde, não podemos deixar de considerar as boas práticas desenvolvidas por prestadores privados de saúde, e enquadrá-las no domínio da oferta global do sistema de saúde disponível aos portugueses.
Esse objetivo que deve animar e mobilizar todos os portugueses não é, contudo, alcançável com discursos que vinquem diferenças ideológicas sem sentido ou que potenciem a ansiedade e a insegurança dos portugueses.
Bem sei, que uma certa esquerda gosta de colocar a discussão em torno do serviço nacional de saúde num patamar ideológico e de paternidade do serviço nacional de saúde.
Mas, o serviço nacional de saúde não é património nem da esquerda nem da direita. É conquista e património dos portugueses. É com isso em mente que os responsáveis políticos se devem centrar, focando a sua atenção em encontrar soluções para a sua modernização e para os problemas dos portugueses e não para a disputa partidária em torno de um tema desta sensibilidade.
Só assim poderemos assegurar que num momento de crise económica e social como o que estamos a enfrentar, o serviço nacional de saúde se continue afirmando como um instrumento determinante para a construção de uma sociedade mais equitativa a que devemos aspirar coletivamente.