É comum ciclicamente afirmar-se que a União Europeia se encontra num impasse ou atravessando uma crise profunda. Mas, a verdade é que o momento atual é provavelmente aquele que na história da União Europeia mais se aproxima de uma verdadeira crise existencial.

A falência do multilateralismo e o ressurgimento dos movimentos populistas de esquerda e de direita na Europa, associada à crise dos refugiados, à saída do Reino Unido da UE, à crise do Estado de Direito em alguns países da União, colocam as instituições europeias sob uma pressão sem precedentes.

Se aos fatores mencionados acrescentarmos a circunstância de a gestão da crise das dívidas soberanas ter deixado fortes cicatrizes na relação entre os Estados ainda não totalmente ultrapassadas, deparamo-nos com circunstâncias singulares que não podem deixar de colocar apreensão a todos quantos acreditam no projeto europeu.

A crise existencial que a União Europeia atravessa surge no pior período da história da União Europeia.

Surge num momento em que a solidariedade entre Estados, a coesão das instituições e a capacidade de resposta eficaz, mais se reclama.

Surge num momento em que União é desafiada e convocada para intervir em áreas cujas competências tradicionalmente se encontram no âmbito da intervenção dos Estados.

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Surge num momento em que, pela primeira vez, todos os Estados da União Europeia sofrem os efeitos de uma crise pandémica global com efeitos simétricos, (embora com impactos assimétricos).

Surge num momento em que a magnitude do impacto da referida crise é de tal ordem, que não é suscetível de ser enfrentada pelos Estados, mas cuja resposta necessariamente tem de ser comunitária.

É certo que não são novos os debates na União Europeia a propósito de matérias cuja resposta convoca instrumentos e respostas comunitárias áreas de intervenção típicas dos Estados. O debate que se tem construído e desenvolvido na União Europeia a propósito das alterações climáticas, ou da agenda digital, são disso um bom exemplo.

Mas, em nenhum momento a União Europeia foi confrontada com a emergência de uma resposta comunitária para uma crise desta dimensão e com este impacto.

O impacto previsto da COVID – 19 sobre os orçamentos e sobre a dívida pública nos Estados Membro da União Europeia é altamente preocupante. O défice da zona euro, que antes da crise se estimava em 0,9%, pode atingir 8,6% do PIB. A dívida pública, de acordo com estimativas da Bruegel, pode subir de 85% para 96% do PIB. O PIB da zona euro pode sofrer uma queda de 5%.

A crise pandémica é simétrica no sentido que afeta todos os Estados, mas os seus efeitos na estrutura económica e social é assimétrica. Os seus efeitos não se farão sentir da mesma forma em todos os Estados. Em Portugal, as previsões não são de modo algum animadoras. Mas, o caso mais grave será o de Itália, cujo rácio da dívida pode subir aos 157% do PIB, o que constituiria um recorde histórico.

Por outro lado, nunca a União Europeia se viu confrontada, como neste momento, com a necessidade de intervir em áreas tipicamente ao abrigo de competências tradicionais dos Estados Membros.

Ora, estas circunstâncias, – a magnitude da resposta necessária para fazer face a esta crise e a emergência de novas áreas de intervenção comunitária -, exigem necessariamente que façamos uma reflexão sobre o futuro da União Europeia e sobre o processo de aprofundamento de integração comunitária.

Mas exigem também que essa reflexão e esse debate se realize com esperança no futuro da Europa. Exigem que não nos esqueçamos das transformações e avanços civilizacionais, económicos, culturais e sociais, que alcançamos juntos nos últimos 70 anos.

A União Europeia desempenhou um papel determinante não só na garantia da paz na Europa, como na consolidação de um espaço cultural e de valores civilizacionais comuns.

O mercado único abriu novos mercados e novas oportunidades às empresas e aos cidadãos. A abertura de fronteiras ofereceu novos horizontes aos cidadãos e aos jovens da geração Erasmus. Os fundos de coesão abriram a possibilidade de países europeus, como Portugal, desenvolverem um caminho de convergência económica e social ímpar com os países mais desenvolvidos do mundo.

Hoje os desafios são outros, mas igualmente decisivos.

Além da resposta robusta, mas solidária, à crise pandémica que se exige por parte das instituições comunitárias e que a proposta da Comissão Europeia parece corporizar, impõe-se que a União Europeia se refunde, de modo a demonstrar-se apta a fazer face aos desafios das sociedades contemporâneas.

Se os europeístas não refundarem a União Europeia, não a projetarem para o futuro e não adaptarem as suas instituições para enfrentar os desafios do mundo contemporâneo, serão os populistas, os nacionalistas e os anti-europeístas que não se identificam com os valores fundacionais do projeto europeu, que o farão.

Os grandes desafios que se colocam às sociedades contemporâneas assumem uma dimensão transnacional que não cabem nas fronteiras dos Estados nacionais. As alterações climáticas, as migrações, as ameaças geopolíticas, os impactos económicos da globalização, a investigação, o combate a pandemias globais, não encontram alternativa que não seja a Europa.

Se no momento da fundação do projeto europeu o desafio era a promoção e a garantia da paz, hoje não pode deixar de ser o combate às alterações climáticas.

Se no momento da instituição do mercado único europeu o desafio era o da abertura de oportunidades e horizontes aos cidadãos e às empresas europeias, hoje não pode deixar de ser o da afirmação da investigação como uma das prioridades da União Europeia.

Se no momento da implementação do Euro o desafio era o da convergência económica e social no espaço europeu, hoje não pode deixar de ser o da afirmação da saúde e a criação de instrumentos comuns para o combate a pandemias como tarefas centrais da União Europeia.

Todavia, os desafios com que as sociedades contemporâneas enfrentam não se compadecem com processos de decisão lentos, ineficazes e pouco ágeis. O tempo das sociedades contemporâneas não é compatível com os longos processos de negociação e de decisão de 27 Chefes de Estado prolongados por reuniões infindáveis. Exige-se agilidade, transparência, eficácia e eficiência na resposta às ambições e anseios dos cidadãos.

É neste contexto que a proposta do Presidente francês Emmanuel Macron, e que a emergência desta crise colocou em segundo plano, nos termos da qual é fundamental discutir a arquitetura da União e porventura introduzir processos de integração a várias velocidades, assume uma relevância e atualidades extremas.

Não temos o hábito em Portugal de desenvolver no espaço público discussões estruturadas sobre Europa. Discutimos fundamentalmente pacotes de ajuda económica e fundos comunitários e reservamo-nos à crítica constante à opacidade e falta de democraticidade das instituições.

Mas, num momento em que um dos nossos aliados históricos (Reino Unido), saiu da União Europeia, o que trará consequências profundas não só nas nossas exportações, mas também no nosso contexto geopolítico, e se iniciará a discussão da reconfiguração da União Europeia, não podemos deixar de colocar o tema na agenda do debate público.

Como a adesão à CEE e ao Euro em determinado momento histórico transformaram profundamente o nosso país, o modo como nos colocaremos enquanto comunidade na previsível reconfiguração da União Europeia, transformará o nosso futuro.

Os momentos de crise transportam a esperança por novas e entusiasmantes oportunidades. Introduzem a possibilidade de sairmos da zona de conforto e de desafiarmos o futuro. De nos inquietarmos e de transformarmos a resiliência e a resistência, em criatividade, em energia positiva e em capacidade de transformação.

É esse espírito que precisamos na União Europeia e em Portugal.

É essa energia, criatividade e capacidade de liderança, que nos permitirá operar as transformações que devolverão a esperança e capacidade de acreditarmos no nosso futuro coletivo num espaço europeu de liberdade, de tolerância, de solidariedade e de prosperidade económica e social.