Um discurso universal é um formato narrativo que permite afirmar com igual propriedade tudo e o seu contrário, embora de forma aparentemente persuasiva; o objetivo é enganar ou fingir que dominamos um assunto de que não percebemos nada.
Há quem os aprenda para viver disso, e há quem os conheça bem para não ser enganado.
Seja como for talvez lhe interesse uma lista (não exaustiva) com 8 truques na arte:
Truque nº 1 – coloque a sua posição como a moderada entre dois extremos difíceis de aceitar.
Exemplo: Entre uma rainha de Inglaterra demasiado conservadora que quer manter tudo, seja bom ou mau, e Meghan que quer a mudança pela mudança, temos uma Kate ponderada e moderna a querer manter o que está bem e corrigir o que está mal.
Quando lhe apresentarem como bom o meio termo entre dois extremos maus, alerta, talvez o estejam a ludibriar: a virtude só está no meio se os extremos forem aceitáveis. Senão: entre quem se embebeda todos os dias e quem só se embebeda ao fim de semana, a virtude estaria em embebedar-se dia-sim, dia-não.
— Este é o truque “o melhor da cantareira”.
Truque nº 2 – diga que até gosta daquilo que vai criticar
Exemplo: Eu até votei no partido X nas outras eleições, mas tenho de reconhecer que X esteve muito mal na situação Y.
Quem fala não tem factos que mostrem que X esteve mal (se tivesse apresentava-os) por isso recorre a este expediente: como as pessoas não mentem contra si, o embaraço funciona como prova de autenticidade induzindo o ouvinte a pensar que o partido X esteve mesmo mal. Atacar a própria tribo é uma forma muito vulgar de suscitar simpatia (um político a dizer que o seu partido esteve mal, um padre a dizer que a Igreja está mal, um homem a dizer que os homens são machistas, etc.).
— É o truque “arrependido a tempo”
Truque nº 3 – invente uma divisão interna.
Exemplo: imagine que vai comentar as eleições para presidente num dos grandes clubes de futebol: identifique nesse clube um nome desconhecido, digamos Pancrácio Floriberto, e depois diga com ar convicto: lavra uma luta muito feia nos corredores do [leão, dragão, águia] entre os homens ligados a Pancrácio Floriberto, um catalisador das forças interessadas em construir um clube moderno, capaz de se afirmar nos grandes palcos do futebol europeu, e o grupo do atual presidente centrado no sistema, nos esquemas, nos processos menos claros. Quem sairá vencedor? Não sabemos.
A ferramenta pode aplicar-se com igual êxito a comentar política interna da China, disparates na Casa Branca, eleição de um Papa, relações em qualquer família real, etc.
— É o truque “dividir para opinar”.
Truque nº 4 – rajada de adjectivos
Exemplo: pessoa de inteligência superior, muito bem preparado, o espírito mais livre da sua geração, arguto, hábil, brilhante, culto e com rasgo, de fino recorte ético, um exemplo para todos. Também existe o oposto: Um fascista, machista, racista, misógino, boçal, neoliberal, esquerdista, trotskista, soixante huitard retardé. Poupa-se o esforço de referir factos e conseguem-se gerar fortes emoções.
— É o truque “à dúzia é mais barato”.
Truque nº 5 – diga o que todos estão a dizer. A cada certo tempo lá vem uma onda mediática. (Há um exemplo curioso neste vídeo de 2:35 min). O truque consiste em embrulhar na onda do momento a mensagem que quer passar.
Exemplo: imagine que vai comentar a prisão de Sócrates quando a onda é “até ao trânsito em julgado o réu é presumido inocente”: devemos deixar a justiça fazer o seu trabalho sem pressões nem perturbações tendo em conta que um dos pilares fundamentais do nosso ordenamento jurídico é a presunção de inocência: é-se inocente até prova em contrário. (Estas ondas mudam depressa como se viu no dia 2 de maio de 2018: sem trânsito em julgado Sócrates sofreu um forte ataque coordenado).
O risco de aproveitar a onda é poder parecer uma rolha a dançar no mar que tanto vai defender categoricamente que os incêndios do tempo de Sócrates e Passos podem ser usados na “chicana política”, como vai exigir que uma das maiores tragédias mundiais em fogos (julho-outubro 2017) não pode ser usada na “chicana política” (fact check cinco dias antes da tragédia). Note, porém, que lançar uma onda mediática exige imenso poder pelo que quem segue as ondas pensa o que algum poderoso quer que pense (calcule quantos recursos são necessários para o efeito descrito neste vídeo).
— É o truque “surfar a onda”
Truque nº 6 – diga, e logo a seguir diga que não quis dizer. Permite-lhe dizer claramente o que pensa e depois recuperar o máximo de crédito possível junto daquelas pessoas que desiludiu ou assustou.
Exemplo: Kate esteve muito mal, embora, evidentemente, a sua juventude seja uma atenuante. Não quero com isto desculpar Meghan, muito pelo contrário, embora naquele contexto se calhar não tinha alternativa. Ironicamente Carlos soube fazer de morto e sair limpo, embora acabasse salpicado de lama pela atuação de Camila.
— É o truque “sim e não”
Truque nº 7 – qualifique com palavras grandiosas, mas que ninguém sabe o que querem dizer.
Exemplo: temos hoje uma sociedade mais justa, mais igual, mais inclusiva, mais solidária, mais coesa, mais feliz. (Já antes tratei este tema).
Truque nº 8 – faça citações, não importa que não tenham nada a ver.
Exemplo: como dizia Marco Aurélio “Olha as estrelas e corre com elas” antecipando a maior das revoluções: “Imaginei que percorria o universo sentado num fotão e descobri a relatividade” (Einstein, físico e matemático do séc. XX). Mas não será a própria matemática um triturador das nossas crianças-estrela na sua “vocação de simplificar que converte os matemáticos em autênticos simplistas, seres agachados, caprichosos e simples no pior sentido da palavra” (Guzman) quando para Arendt “a educação é assim o ponto em que se decide se se ama suficientemente o mundo” ou as crianças, poderíamos nós acrescentar. As crianças, o mundo e seus problemas. Se três períodos fossem solução para os problemas, há muito não haveria problemas na educação. Acabem-se os três períodos lectivos, introduzam-se os dois semestres.
Aurélio, Einstein, Guzman ou Arendt estudaram o problema dos 3 períodos?
É o truque “disparates unidos, jamais serão vencidos”.
* * *
Como um químico separei os elementos, mas o vulgar são os sofismas “tutti frutti” que misturam vários truques: entre os adeptos do facilitismo e os adeptos da exigência sádica geradora de abandono e desigualdade, estou eu a defender uma escola amiga, acolhedora, justa, inclusiva, mais formadora, formativa e formante, parafraseando Eugénio de Andrade, a escola é o berço onde dorme toda a humanidade, a luz do tempo sem medo, e nisto temos de fazer um mea culpa enquanto professores: quantos de nós foram mais obstáculo que facilitadores, mais diretivos que construtores? Não quero com isto culpar os professores, muito antes pelo contrário, se temos hoje uma escola pública mais inclusiva, mais eficiente, mais proativa, mais próxima da comunidade que serve, isso deve-se ao trabalho da aldeia educativa.
[Exercício: identificar os oito truques.]
As vacinas inoculam um “agente inativado” que fecha a pessoa ao “agente real”.
Esse é o mesmo mecanismo que torna perigoso expor-se a grandes doses de “música inativada” (pimba) pois imunizam o ouvido à “música real” (eg, BWV 232). Programas pimba de formação de executivos fecham os gestores à formação real; matemática inativada (as aprendizagens essenciais inoculadas por este governo) fecham os alunos à matemática real (e maravilhosa); discursos políticos pimba fecham as pessoas à política nobre; poderia dar mil outros exemplos.
Os discursos universais são o instrumento que permite inocular grandes doses de narrativa inativada gerando um espaço público pimba ao imunizar as pessoas contra o que realmente conta: o conteúdo, a substância, a qualidade, a boa política, a busca do bem, a verdade, o belo e o justo.
Um processo subtil, eficaz, destrutivo, mas que é possível desmascarar e neutralizar.
PS. Por favor não deixe ver este vídeo: