“Que estas mulheres todas serão comuns a todos esses homens, e nenhuma coabitará em particular com nenhum deles; e, por sua vez, os filhos serão comuns, e nem os pais saberão quem são os seus próprios filhos, nem os filhos os pais.”
(Platão, A República, V – 457d)

1 No mundo das distopias

Uma das definições apresentadas por Italo Calvino, em Porquê ler os clássicos, diz-nos que “um clássico é um livro que nunca acabou de dizer o que tem a dizer”. Ele será, nesse sentido, continuamente revisitado, provocando em nós ou inspiração ou desprezo, mas nunca indiferença. No domínio da teoria política, uma obra clássica mantém-se como fonte de inspiração ao longo dos tempos, e essa revisitação contínua preserva a atualidade dos princípios políticos e filosóficos apresentados. É o caso de Politeia, ou A República, de Platão, escrita no século IV a.C.: a maioria dos seus princípios filosóficos continua a ser discutida e uma das suas propostas políticas mais populares – a abolição da família – continua a ser ponderada enquanto princípio filosófico-político, até na literatura.

Pensemos nas três grandes distopias do século XX. Ao intuírem ou descreverem os perigos dos regimes totalitários, os seus autores identificaram a família biológica como alvo a abater. Em Mil novecentos e oitenta e quatro, George Orwell descreve como a dinâmica familiar é tomada pelo partido para alimentar o espírito de mobilização do regime:

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“A família não podia ser totalmente abolida, por isso as pessoas eram até incitadas a gostar dos filhos, quase à velha maneira. As crianças, em contrapartida, iam sendo sistematicamente viradas contra os pais e ensinadas a espiá-los e a denunciar os seus desvios. A família convertera-se, afinal, numa extensão da Polícia do Pensamento. Dispositivo mediante o qual cada indivíduo acabava dia e noite rodeado de informadores que o conheciam na intimidade.”

Aqui, a instituição familiar não é abolida, mas o seu sentido é esvaziado e reapropriado pela lógica política. A mesma lealdade, comprometimento e responsabilidade que, tradicionalmente, dedicamos à família devem passar para a esfera pública e traduzir-se na lealdade, comprometimento e responsabilidade para com o partido. É dessa forma que a linguagem familiar se mantém, nomeadamente no líder designado como o Grande Irmão.

O caso altera-se com Nós, de Zamiatine, na medida em que estamos perante uma sociedade racionalmente organizada e matematicamente perfeita, deixando de haver lugar para elementos afetivos e laços biológicos. A abolição é completa: a família é entendida como uma instituição do passado, tornada obsoleta e cujos resquícios se encontram nas brumas da memória: “Parafraseando o que diziam os nossos antepassados, somos uma família.”

Mas é em Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, que a abolição da família assume um lugar central, permitindo contrapor o mundo civilizado ao mundo selvagem. A família pertencerá aos selvagens como forma básica de organização social; já o mundo civilizado dispensou há muito a instituição familiar, encarada como fonte de tensão emocional que desestabiliza a organização do sistema. Não há aqui lugar para os dois minutos de ódio ou mobilizações emotivas em torno do partido. A sociedade encontra-se organizada sob princípios estritos de lógica de produção e o seu funcionamento necessita de uma disponibilidade absoluta dos seus membros (simbolizada pela toma regular de soma), que devem tranquilamente aceitar o seu lugar e cumprir o seu papel. As referências biológicas e de pertença familiar foram simplesmente expurgadas do novo vocabulário que garante a coesão social.

2 No mundo da filosofia

A proposta de abolição da família apresentada por Platão tinha em vista garantir a unidade da cidade e ultrapassar os desacordos que pusessem em causa o bem comum. O argumento é frágil e logo Aristóteles, em Política, assinalou o erro:

“[É] evidente que uma cidade que se torna cada vez mais unitária deixaria de ser cidade. Uma cidade é, por natureza, uma pluralidade e ao tornar-se ainda mais unitária, passará de cidade a casa, e de casa a homem individual, já que podemos afirmar que a casa é mais unitária do que a cidade, e o indivíduo mais do que a casa. Assim, mesmo que alguém pudesse conseguir isto, não o deveria fazer, dado que destruiria a cidade.”

Uma sociedade aberta, como diria Karl Popper muito mais tarde, pressupõe diferenças, divergências e conflitos – que constituem, no fundo, a própria essência da vida em comunidade. Mas o apelo nostálgico das sociedades fechadas não desapareceu, e assistimos hoje a uma nova vaga de entusiasmo em torno dele. De facto, independentemente da discussão académica em torno da literalidade da obra de Platão – tratar-se-á de uma obra séria? uma espécie de demonstração por redução ao absurdo? um exercício de ironia? –, encontramos hoje muitos trabalhos filosóficos sobre a hipótese de abolição da família como princípio político-filosófico, sobretudo, mas não exclusivamente, ligados ao pensamento marxista.

É possível encontrar uma ideia seminal de supressão da família no Manifesto do Partido Comunista, partindo da consideração de que se trata de uma instituição burguesa que serve a lógica capitalista. Eliminar a família nuclear burguesa torna-se, então, um aspeto central do pensamento marxista, que é particularmente apropriado pelo feminismo de cariz marxista das últimas décadas. Para este impulso foi essencial o desenvolvimento tecnológico que tem vindo a tornar cada vez menos utópica a ideia de desaparecimento da família enquanto instituição biológica.

Na verdade, os métodos de reprodução medicamente assistida têm proliferado, aproximando-se da literatura de ficção científica feminista do século XX (pensemos no projeto financiado pela União Europeia para o desenvolvimento de úteros artificiais). Estes desenvolvimentos permitiram, nomeadamente, o surgimento da categoria de gestantes – isto é, mulheres que levam a cabo uma gravidez sem qualquer ligação genética à criança e que, em muitos países, já fazem disto uma atividade profissional. A partir desta possibilidade, a feminista marxista Sophie Lewis publicou, em 2019, um livro intitulado Full Surrogacy Now: Feminism Against Family. A autora entende a gravidez (qualquer gravidez) como um trabalho produtivo e que deve ser encarado como um trabalho comunitário, pelo que todas as gestações deveriam ser levadas a cabo por gestantes, quebrando a ligação biológica entre mãe e filho e a ideia de pertença que lhe está associada. Este seria o fim da família. E, para Lewis, o último ano e meio pandémico deve mesmo ser entendido como uma oportunidade para promover esse objetivo: “Merecemos mais do que a família. E o tempo do corona é um excelente momento para praticarmos a sua abolição.”

Fora do quadro marxista, outros autores têm debatido o assunto, embora sejam mais relutantes em adotar uma posição tão radical. Pensemos na análise promovida por Adam Swift e Harry Brighouse, em Family Values: The Ethics of Parent-Child Relationships: a partir de uma perspetiva liberal igualitária, estes autores discutem as vantagens e os custos morais da abolição da família. Embora reconheçam que o custo moral de abolir a família seja superior às suas vantagens, defendem que os pais devem ter em mente o facto de, querendo o melhor para os seus filhos, promoverem uma sociedade menos justa. Assim, talvez seja admissível lerem livros com as crianças antes de dormir, mas colocá-las em escolas privadas, não – fazendo eco à ideia platónica de que, em nome da justiça, o interesse da cidade deve prevalecer sobre os nossos vínculos familiares.

3 No mundo real

Para os comuns mortais, que têm contas para pagar e problemas da vida real, estas discussões académicas parecem ser, no mínimo, estranhas. Mas a verdade é que as políticas atuais, ainda que se encontrem longe das distopias filosóficas e dos avisos literários, têm levantado muitas bandeiras vermelhas, para usar a expressão de Margaret Atwood a propósito de Orwell. De facto, a predominância do estado nas nossas vidas tem diminuído progressivamente a esfera privada e ameaçado a família como instituição.

Em Portugal, esse movimento de supressão do espaço privado tem-se acelerado nos últimos anos em resultado da crescente intervenção estatal em todas as esferas da sociedade, simbolizada pela proliferação de entidades reguladoras e vários tipos de comissões. Pensemos no recente alerta de Ramalho Eanes para a “governamentalização” que ameaça as Forças Armadas e na intenção expressa pelo projeto de lei do Partido Socialista de regular as ordens profissionais, que deveriam ser espaços de autorregulação por excelência. Um apetite insaciável, como diz António Barreto.

Contudo, o domínio preferido da ação governativa desenfreada é o da educação. Recordemos a luta aberta às escolas com contrato de associação, que resultou na aniquilação de muitas entidades que serviram a sociedade portuguesa durante décadas. Ou a discussão em torno da disciplina de cidadania e desenvolvimento, defendida como obrigatória pela necessidade de “libertar” as crianças das más influências familiares. Em ambos os casos, assistimos a uma posição de radicalização e rutura face ao consenso coletivo anterior.

E podemos verificar como esse processo continua em curso com a mais recente Estratégia Nacional de Combate à Pobreza 2021-2030: de acordo com a proposta do governo, uma das medidas fundamentais para combater a pobreza é “reforçar os apoios à frequência de creches e pré-escolar assegurando às famílias de menores recursos um acesso tendencialmente gratuito, integrando o ensino a partir dos três anos de idade na escolaridade obrigatória no médio prazo” (itálico nosso).

Muitas dúvidas podem ser colocadas a propósito da proposta de integrar o ensino a partir dos 3 anos na escolaridade obrigatória. Ao nível pedagógico, podemos questionar se isto não significará introduzir uma desnecessária pressão de aprendizagem em crianças tão pequenas, se considerarmos que aquela integração significará uma alteração qualitativa no modelo educativo (nada é dito sobre isto, mas adivinhamos o que nos espera). A um nível pragmático, podemos questionar a capacidade de implementação por parte do estado. Basta pensar que a Lei n.º 85/2009, de 27 de agosto, ao estabelecer a universalidade da educação pré-escolar para todas as crianças com 5 anos (a Lei n.º 65/2015, de 3 de julho, veio alargar essa universalidade para os 4 anos), impõe ao estado “o dever de garantir a existência de uma rede de educação pré-escolar que permita a inscrição de todas as crianças por ela abrangidas e o de assegurar que essa frequência se efetue em regime de gratuitidade da componente educativa” (art. 4º, n.º 2). Ora, não só o estado foi incapaz de responder a estas necessidades, como não conseguiu cumprir o objetivo de alargar a universalidade para os 3 anos até 2019 (de acordo com o art. 10.º, n.º 1, do Despacho Normativo n.º 10-B/2021, as crianças com três anos estão colocadas em segunda prioridade).

Resulta de todos estes incumprimentos que, mais do que apresentar uma chamativa estratégia de combate à pobreza, o governo deveria limitar-se a cumprir o que já estava estabelecido – do que beneficiariam não só as famílias mais carenciadas, mas todas as famílias da sobrecarregada classe média. Na verdade, quase todos os portugueses (que, não sendo pobres, veem o salário mínimo a aproximar-se assustadoramente do seu) sabem da dificuldade que é encontrar creches e infantários para os mais novos, bem como dos custos associados. Portanto, que o estado cumpra esse objetivo e se disponha, a título de combate à pobreza, apoiar especificamente as famílias mais carenciadas, pouco haverá a contestar.

Porém, o problema maior desta proposta reside no que ela consiste de ocupação do espaço familiar pela iniciativa estatal – mais uma vez, em movimento de radicalização e rutura. De facto, se recorrermos aos diplomas legais que resultaram das primeiras décadas democráticas, fica evidente o lugar do pré-escolar no sistema educativo português. De acordo com a Lei de Bases do Sistema Educativo, “A frequência da educação pré-escolar é facultativa, no reconhecimento de que à família cabe um papel essencial no processo da educação pré-escolar” (art. 5.º, n.º 8); ideia repetida na Lei Quadro da Educação Pré-Escolar: “A frequência da educação pré-escolar é facultativa, no reconhecimento de que cabe, primeiramente, à família a educação dos filhos, competindo, porém, ao Estado contribuir ativamente para a universalização da oferta da educação pré-escolar, nos termos da presente lei” (art. 3.º, n.º 2).

Nestes dois diplomas legais, o consenso comunitário reconhece claramente que cabe à família a educação dos filhos nestas primeiras idades. Mas no admirável mundo novo, a família é vista como um problema, um peso, uma prisão (que nos condena ao preconceito, à ignorância, à pobreza) e cabe ao estado a função de nos libertar. Na realidade, este processo de estatização e de ataque à família corresponde, antes, a um processo de formatação social que tende para a uniformização e a imposição de uma única visão legítima do mundo. Mas ela aparece aqui camuflada pelo velho truque linguístico de apelar a um fim desejável (o combate à pobreza) para introduzir uma lógica oculta e subversiva.

Para quem está atento às bandeiras vermelhas, esta proposta de obrigatoriedade constitui mais um passo no caminho atentatório da democracia: ao procurar a fabricação de cidadãos uniformizados, ela elimina a diferença, a diversidade, o pluralismo e a iniciativa familiar e pessoal. Tal como a proposta de Platão tendia a eliminar a cidade, a crescente estatização da sociedade tende a eliminar a democracia. Mas as distopias literárias dão-nos uma importante lição contra as utopias filosóficas: o espaço familiar é um reduto de resistência e liberdade contra os instintos totalitários dos atuais regimes políticos, que se assemelham cada vez mais a democracias doentes.