Uma das magnas dificuldades de construirmos a nossa vida neste ano de 2021 é que só com grande esforço e invulgar rasgo de engenho conseguiremos dizer algo que até ver não tenha sido dito. Trata-se de uma frustração de primeiro mundo, com que apesar de tudo bem poderá o nosso fado. É precisamente este o caso com que nos deparamos em relação à atual crise política nacional. Não terá havido um único cenário ainda não previsto por parte de colunistas e comentadores, os amadores e os profissionais, quer na aparente solenidade de uma publicação ou no aconchego de uma espontânea conversa ao balcão.
Não é exatamente esse o caso que nos traz aqui, hoje. Com as eleições legislativas marcadas para 30 de janeiro, há um outro fenómeno que, além da possível reorganização do poder político nacional, julgamos dever ocupar, em perspetiva e em retrospetiva, a razão dos cidadãos, os mais e os menos cautos com estes solavancos: a abstenção expectável nos próximos atos eleitorais.
É certo que também em relação a esta concreta matéria pouco parece haver de realmente novo para avançar. Cumpre, ainda assim, sublinhar alguns pontos e relembrar outros. Nas primeiras eleições para a Assembleia Constituinte, em 1975, a abstenção cifrou-se nos 8,5%, o valor mais baixo de sempre no país e praticamente sem paralelo em atos eleitorais noutras latitudes. Logicamente que o sufrágio em causa decorreu num muito particular momento. Tratava-se do rescaldo de um longo processo de governo autoritário que durante décadas cerceou os mais básicos direitos sociais e políticos dos portugueses, que provavelmente sentiram uma visceral vontade de, deparados com um sufrágio digno de Estado de Direito, procurarem tomar nas suas mãos os seus próprios destinos.
De 1975 viajamos até 2019. No último ato eleitoral para a escolha dos deputados à Assembleia da República, o valor total da abstenção superou pela primeira vez a barreira dos 50% – rigorosamente 51,4%. Fazendo uma nova, rápida e simples incursão pelas tabelas da abstenção de 1975 a 2019, o aumento neste percurso deve preocupar-nos. Dos 16 atos eleitorais decorridos naquele período, só em três deles o valor da abstenção não foi superior ao registado no sufrágio imediatamente anterior. De facto, desde o sufrágio de 2009 que o valor da abstenção registado foi sempre superior a 40%, tendo ultrapassado, como referido, o cume dos 50% no último ato eleitoral.
Sem prejuízo de não nos constituirmos como conhecedores da futurologia e suas derivadas gnoses, parece contudo certo que, a não ser que se registe uma alteração matricial na ordem constituticional portuguesa – com a introdução, por exemplo, do voto obrigatório, cujo debate em torno do qual deve ser reaberto e massificado, como abaixo avançamos, e sem prejuízo de não termos uma posição tomada a respeito dos seus méritos –, não tornaremos a ter níveis de participação semelhantes aos das décadas de 70 e 80. É mais do que evidente o litigioso divórcio existente, atualmente, entre as grandes massas e a classe política. Não obstante tratar-se, sublinhamos, de um divórcio perigoso, queremos esclarecer contudo que não nos deverá ele fazer embarcar na gratuitidade da retórica anti-partido ou anti-político. Fazendo-o, frustrar-se-iam de vez as chances de reconciliação.
Coloca-se, no entanto, o problema da legitimidade daquele que é eleito por poucos para governar muitos. Apesar de em Portugal não haver qualquer norma que faça depender a legitimidade do sufrágio do alcance de um eventual patamar de participação – exceção feita aos referendos, cuja vinculatividade o artigo 115º/11 da Constituição da República Portuguesa faz depender da circunstância de “o número de votantes ser superior a metade dos eleitores inscritos”, meta que nos três referendos até ao momento decorridos nunca foi alcançada – e de, por esse motivo e em abstrato, não haver qualquer ameaça de consequência jurídica para um eventual sufrágio em que a abstenção atinja patamares ainda superiores aos de ora, é um facto evidente que resulta prejudicada a legitimidade de uma candidatura ou líder eleitos num sufrágio com uma abstenção alta.
É da natureza das coisas compreendermos que a legitimidade dos eleitos e das instituições democráticas é conferida pela circunstância de poderem, na sequência dos resultados eleitorais, apresentar-se como representantes da maioria da população. Ora, quando os níveis de participação são baixos, parece poder ficar em cheque essa representação. É que, e como explicam Hoffman e Graham (2006, “Introduction to Political Concepts”), por muito larga e robusta que possa ser a votação alcançada por uma certa candidatura, acabará, neste caso, por ser eleita sempre por uma minoria de cidadãos.
E se é certo que esta ameaça parece efetivar-se já numa eleição em que a abstenção ronda os 50%, que dizer de uma eventual hipótese de umas legislativas ou presidenciais em que o vencedor é eleito com uma abstenção na ordem dos 70%? Não obstante bem sabermos que não é rigoroso poder prever um valor futuro somente através da análise dos dados passados, há um facto indesmentível: salvo esporádicas exceções, os números da abstenção têm vindo a aumentar avassaladora e freneticamente, desde a fundação da democracia até hoje, nas eleições presidenciais, legislativas, autárquicas e europeias.
Mesmo que partamos do pressuposto de que as lideranças políticas de hoje são inferiores às do passado – recordemos, na segunda metade do séc. XX, as dimensões intelectuais e políticas de Mário Soares, Sá Carneiro, Freitas do Amaral ou Álvaro Cunhal – e portanto menos cativantes para o eleitorado, acompanhamos David Roque quando estatui que talvez pouco interesse procurar compreender se é a “fraca capacidade da governança que afasta os cidadãos, ou se é o desinteresse dos cidadãos que fomenta a má prestação política dos eleitos”. O factual é que a luta contra a abstenção deve hoje ser considerada uma prioridade nacional. As eleições são pelos politólogos reconhecidas como uma espécie de “picos de cidadania”, onde através do voto participam politicamente indivíduos que habitualmente circulam distantes dos solavancos político-partidários. Cumpre compreender que até desses “picos de cidadania” a população geral parece querer afastar-se.
Apesar de não termos, nós, ao momento, uma posição estabilizada em relação aos méritos do voto obrigatório ou da diminuição da idade de voto dos 18 para os 16 anos, temos poucas dúvidas de que são debates que não só urge serem novamente abertos, como devem ocupar uma parte significativa da reflexão político-social hodierna, sendo alargados às massas. É importante agir: talvez ainda estejamos a tempo de reverter a tendência. Ou, pelo menos, de a atenuar. O que já não seria mau.