1 Estava fora e longe, fui apanhada de surpresa apesar de “ser esperado”. Comovi-me. Nunca me convenci muito que a morte se torne menos morte se for “esperada”, nunca aprenderemos a conviver com o definitivo.

E depois, a 1800 metros portugueses de altitude, por entre o tojo e a rocha pensei em como tive sorte: em vez de uma vida foi como se tivesse percorrido duas com Álvaro Barreto. Calhou assim. Uma vida com os amigos comuns, encontros, conversatas, discussões infindáveis à mesa dos almoços e jantares de fim de semana, viagens, férias. E depois, a outra vida. Álvaro Barreto, político, eu jornalista, e nunca por nunca ser, a vida social na comunidade dos amigos ou na apetecida solidão de alguns almoços a dois, subverteu ou sequer interferiu na outra. E hoje quando penso nisso — e pensei muito estes últimos tempos — concluí que a consciência que tenho de que foi assim, quase releva da proeza: de um lado havia uma convencida advogada do diabo; do outro, um político comprometido.

Talvez fosse porque percebêssemos que só assim eram possíveis as duas vidas, talvez porque nos respeitássemos, ou simplesmente porque apreciássemos as coisas feitas a sério. Não sei, mas foi assim que se passou. Já posso hoje despir a advogada do diabo e vestir a de testemunha. Era para o ter feito mais cedo, mas um debate nacional mais alto se levantou entretanto.

Mas agora, a Álvaro o que foi de Álvaro.

2 Este introito — prolixo porventura – era-me contudo indispensável para chegar ao que me traz. É que não foi senão o facto de Álvaro Barreto e eu termos logrado esta autonomia face aos respectivos ofícios que permitiu ter-me apercebido, com nitidez e proximidade, do modo como enquanto ia servindo o país durante anos e anos, ele que era um generosíssimo homem de amigos, nunca os privou da sua dialética veloz, onde inteligência e humor cintilavam com o mesmo brilho. Geria bem o tempo, lidava bem com oficio, gostava de viver, fora um exímio desportista. Ignoro aliás se com raras excepções, as salas lisboetas aprenderam alguma coisa com ele. O quê? Aquilo que pode distinguir um ser humano que valha a pena, dos outros — ou mais amorfos, ou mais egoístas, ou menos disponíveis. Aprender por exemplo o seu melhor legado: sermos nós a fazer alguma coisa pelo país e não o Estado a fazer por nós.

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3 A palavra pátria caiu em desuso. Quem lhe publicite amor é de imediato um desprezível “nacionalista” — a confusão é propositada. Perdeu-se a noção de quase tudo e nessa enxurrada também foi a pátria. Ou melhor, foram as razões que levam quem a evoca, a evocá-la: brio, gosto, orgulho por servir. Uma linguagem que quase parece arcaica mas vi Álvaro Barreto a fazer isso em distintos palcos e diversos fóruns. Era rico, podia ter continuado a jogar golfe e a ser rico (assinando nos intervalos uns vagos “pareceres” que é o que fazem os ricos indolentes, almofadados nas suas conchas) mas não: desinstalou-se e meteu-se ao trabalho político. Trazia currículo invejável da privada, onde provara como poucos no desenvolvimento de Portugal. Como era bom, os seus trabalhos de Hércules foram vários e variados. Seis chefes do governo o chamaram, com eles trabalhou e de cada vez foi mais que um ministro. Houve alguns medíocres que davam corda à maledicência justamente por ele se ir dispondo a trabalhar — do mesmo modo — com o centro direita ou com o centro esquerda. Sem perceber que as pastas que tutelava, as iniciativas que tomava, as escolha que fazia, as equipas que liderava, a energia que exibia, não serviam moradas políticas, distanciavam mais o país da sua mediania. Empurrando-o para frente. e com isso desenvolvendo-o ou pelo menos, ajudando a desenvolvê-lo.

4 A sua disponibilidade não se esgotou no governante. Pertencia ao PSD com infatigável colaboração e militância. Para onde quer que o designassem, deputado, cabeça de lista, comissões, direcções, grupos de trabalho, não lhe ocorria recusar. Comprometera-se: a política e a militância eram-lhe deveres embora a ideologia não fosse com ele. Achava que ‘tudo isso’ (e achava muito mal) não relevava do essencial, o que o interpelava era “resolver” (e se dependesse só dele, resolver bem e depressa a bem do país). Talvez porque soubesse que nunca poderia ser de outro modo — não tinha cultura política, não era grande leitor, era um peixe fora de água no mundo intelectual — nunca porém se fez passar pelo que não era. A sua cultura política era feita de decisão e resultados. A mim parecia-me impossível que na política a acção — fosse ela qual fosse — não decorresse da ideologia, assente nos seus valores identificadores e espantava-me tanto “pragmatismo”, mas as coisas eram assim. Álvaro Barreto encarnava um “modelo” político visto com menores pergaminhos, mas sucede que a competência com que governava redimia-o da “ segunda divisão” para onde queriam chutá-lo os bem pensantes que preferiam o gasto à “eficácia”. Fosse como fosse, defendia-se com convicção, driblava bem as oposições e nos bastidores era acolhedor — e solidário — com os adversários e sei do que falo: ajudou alguns e fề-lo muitas vezes, no sentido mais plural da sua generosidade.

E finalmente… o humor. Barreto, levando o sério a sério, foi sempre incapaz de se dar importância. Requisitado, ironizava até ao infinito consigo mesmo, autobriografando-se na exposição dos seus ridículos, de gaffes, se as cometia, de tropeções políticos, se os dava. Ria de si mesmo, pagando da mesma moeda aos outros com quem usava de igual corrosivo método: não era o humor um óptimo instrumento de navegação? Era. Foi com humor que ele navegou uma vida inteira por vários mares.

5 Porque decidi escrever isto? Pelo gosto — e a responsabilidade — de evocar alguém que merece algo mais que palavras de circunstância, porque essas leva-as o vento. Não conheço — e a minha memória é grande e antiga — muitos Álvaros Barretos como este: deu certamente mais do que recebeu. Mas reconhecer generosidade humana, qualidade política e resultados governamentais em alguém de direita, militante do PSD e que se dizia apenas um “vulgar engenheiro” é de tal forma desconforme com o ar do tempo e com os tão aplaudidos modelos culturais vigentes que, paciência.

Era isto mesmo que eu tinha que escrever.

PS: Corajosos, reservados, silenciosos. Foi assim durante muito tempo, todo o incomensurável tempo que durou a via sacra de Laura e Pedro Passos Coelho. Chegavam notícias de vez em quando, nunca chegavam detalhes. Sabia-se, quando muito, de uma melhoria ou uma recaída; de outra entrada nos hospitais, de mais um regresso a casa. E quando por vezes me avistei com Pedro Passos Coelho o recato era o mesmo: poucas palavras, sorriso sereno, “estava tudo tranquilo”. Aquilo era só com eles. Privado e não partilhável. Vários anos de mudo sofrimento com raras abertas de céu azul. Mas o estoicismo, esse nunca conheceu nem uma aberta.