Há cerca de duas semanas, Maria João Avillez avisadamente revelou aqui uma confidência que, julgo, passou infelizmente pela indiferença generalizada: «Um dia, lembro-me bem, Passos Coelho havia de me dizer — e eu tomei boa nota — que não sabia porque haveria de voltar à política se os portugueses não queriam nada do que ele teria de fazer para mudar as coisas, (“continuo com a maior das dúvidas que o país queira realmente mudar estruturalmente qualquer coisa de importante”)».

É um parágrafo que revela por inteiro o estado de coisas do presente e do futuro do país: ao fim de oito anos de hegemonia de esquerda, a figura mais desejada à direita é, ao mesmo tempo, quem tem a perfeita noção de que o país não se modificará uma vírgula, mesmo que mude de caras ou partidos no poder, e que se o tentar, de alguma forma, terá pela frente uma maioria social, mediática e intelectual que o bloqueará automaticamente e o fará regressar rapidamente à casa da partida. Passos Coelho terá, pois, a consciência da impossibilidade objectiva e subjectiva de implementar medidas que alterem as estruturas apodrecidas do Estado e da sociedade, e só esse facto é notável, por ser tão realista, ainda que não necessariamente conformado.

O caminho que a sociedade portuguesa trilhou nas últimas décadas demonstra e explica bem que qualquer alteração profunda, no sentido de uma transformação do país no sentido das melhores economias e sociedades europeias, é impossível. Ora, tanto o PS como o PSD têm responsabilidades quanto a este estado de amorfia, eventualmente até mais o PS, considerada a quantidade de anos governativos que leva no currículo desde 1995, mas como em democracia nenhum partido é ou deve ser mais forte que uma sociedade, será porventura mais certeiro dizer que o PS não é o grande causador do atraso português, mas antes a consequência de uma sociedade que não ambiciona nada mais que a gestão de uma vidinha sem rasgo ou ambição.

Já em 1997 Francisco Lucas Pires afirmava, relativamente ao primeiro Governo de António Guterres, que o seu traço mais relevante era «o do conformismo anti-reformador, a condescendência com a atmosfera do tempo, as necessidades conjunturais ou a pressão das clientelas.» Não admirava, pois, o então eurodeputado «que a vocação da actual política socialista não seja a reforma, mas o diálogo», pelo que o que restava era «adiar as reformas para o pós-moeda única, à espera, outra vez, do impulso das forças determinísticas da história abstracta.» O que permaneceria como identificação daquela esquerda era, assim, «um método de gestão política – não um objectivo ou resultado de transformação estratégica», sendo que seria seguro que o PS deixaria «por resolver o problema essencial da configuração do país e da Europa para as tarefas do próximo século».

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Ora, esta descrição corresponde ao desenho de uma proposta política desastrosa, mas que correspondia mais aos desejos de quem elegia do que à força de quem era eleito. Os Governos, em democracia, podem ser um factor positivo de desenvolvimento se as sociedades forem elas próprias uma força motriz nesse sentido. O poder político é mais espelho do que motor. Nenhum país democrático tem mais ou menos, mas apenas e exactamente o que merece.

Curiosamente, em 1978, no 3.º congresso do CDS, o mesmo Lucas Pires reclamava em prol do que chamava a «Nação Activa», por si descrita como «a Nação que paga impostos» e que devia, já naquela altura, tomar conta do Estado, já que até então tinha sido o Estado a tomar conta dela. Na tal «Nação Activa», se materializada, entrariam, arrisco, todos aqueles, trabalhadores, empresários, servidores públicos, até mesmo reformados, com o desejo e o altruísmo suficientes para providenciar um futuro mais risonho às gerações futuras, mesmo que isso envolvesse um sacrifício às gerações presentes. Sucede que, aos poucos, a Nação Activa se foi desvanecendo. Ela existe, é quem ainda sustenta o país, empresários, exportadores, trabalhadores do Estado com sentimento de dever e brio profissional, e, sobretudo, os cidadãos europeus que continuam a suportar com impostos os dinheiros com que Portugal vai escondendo os seus fracassos e a sua mediocridade. Mas foi sendo reduzida à medida que se gerava uma espécie de Nação Passiva, que beneficia mais do que contribui. Um país que caminha a passos largos para ser uma espécie de lar de idosos em forma de Estado soberano, e do qual vai emigrando, aos poucos, grande parte da sua Nação Activa, não tem, sem uma brutal reestruturação política e social imposta por um Governo, capacidade de chegar à primeira divisão da civilização e da prosperidade. Uma vez que esse hipotético Governo é eleitoralmente impossível precisamente por escassez de Nação Activa, o que resta não é um trabalho partidário, mas social, intelectual e cultural que possibilite, bairro a bairro, prédio a prédio, essa mudança, necessariamente a prazo.

Nesse sentido, talvez o grande esforço que a minha geração tem a fazer é o de não emigrar, de ficar e resistir, educando os seus filhos não para a emigração, mas talvez para o sacrifício, envolvendo-se nas paróquias, nos clubes de bairro, nas associações particulares, fazendo um trabalho minoritário que conquiste terreno. Isto se nos considerarmos ainda um país, uma comunidade.

Talvez devêssemos mesmo esquecer a questão da falta de alternativas que tanto nos tem ocupado o tempo. Pensando mais a fundo nisto, não é no Governo que faz falta uma alternativa, mas na sociedade. Se alguém tiver a capacidade de colocar um prédio inteiro a varrer o patamar da sua porta, de forma organizada e abnegada, prescindindo do varredor público para o efeito, esse esforço, multiplicado por milhares, será mais profícuo que um programa eleitoral, que uma lista de deputados de oposição ou um ministro, por melhor que ele seja.

Num país que se habituou mais a reclamar direitos do que a cumprir deveres, e que convive cada vez melhor com restrições à sua liberdade do que o exercício da mesma, talvez isto possa ser visto como uma impossibilidade e não como uma ambição razoável. É a minha ambição, ainda assim: ter um país que cuida do que é seu sem reclamar dos outros esse trabalho e esse esforço.