Nestes dias em que se cruzam o espírito de Natal com as imagens grotescas de maus tratos a imigrantes ou ao seu não bom acolhimento por parte de alguns, vale a pena recuperar o momento em que, no pós-Segunda Guerra Mundial, a sociedade portuguesa acolheu milhares de crianças refugiadas.

“A solidariedade humana não desapareceu e nem tudo é ódio e egoísmo. Portugal é um exemplo bem frisante dos mais nobres sentimentos.” Era assim que um oficial austríaco agradecia à família que tinha acolhido a sua filha. E foram muitas, mais de 5.500, as crianças que chegaram ao nosso país, maioritariamente vindas da Áustria, numa iniciativa promovida e organizada pela Caritas dos dois países. Vinham marcadas pelo conflito que tinham vivido, por pessoas de família que tinham perdido, pela fome e pelo medo. Trovoadas ou fogo de artifício que eram tidos como bombardeamentos que as faziam correr para se esconderem, traumas brutais que alguns não conseguiram ultrapassar. Vieram por uns meses, que para algumas se transformaram numa vida. Para a maioria, Portugal seria um enorme balão de oxigénio a que voltaram uma e outra vez.

Porque Portugal era (e é) um país de acolhimento. Um lugar seguro onde o desconhecimento da língua rapidamente se resolve, onde a diferença dá lugar a curiosidade e a conhecimento. E que nós queremos que continue a ser assim. Com falhas, certamente. Mas onde sempre se chegou e tantas vezes se ficou, deixando e ganhando memórias, formas de estar e ligações para a vida.

Kriemhilde era uma dessas crianças e um de tantos exemplos de tudo isto. Voltou à Áustria logo que a situação o permitiu, mas regressou muitas vezes, uma até de bicicleta e depois, mais tarde, já com a família, filhos e netos. Todos os anos escrevia por esta altura a desejar um “frohe Weihnachten und ein gutes neues Jahr.” Foi dela que há muitos, muitos anos a minha mãe recebeu a árvore de Natal cheia de enfeites que hoje está ao lado do meu presépio e uma outra, grande, “verdadeira como nos filmes”, que um dia entrou pela porta da nossa casa vinda de Melk, quando eu era pequena, e que achei mágica por vir acompanhada de velas de todas as cores.

Mas talvez o que melhor traduza este espírito e esta postura perante a vida que é tão nossa, seja o que aconteceu muitos anos mais tarde, num 26 de Dezembro. Era já noite e a campainha tocou: à porta estava uma outra dessas crianças, agora já mais do que adulta. Quis chegar a Portugal nesse dia, que seria o dos anos da “Tante Maria”. Com ela trazia uma caixa com um coração em ouro que nos entregou, símbolo dos corações que cá encontrou.

Pensem nisto neste Natal.

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