Todos os verões o ritual se repetia naqueles finais dos anos setenta, princípios dos anos oitenta. Da Praia da Luz se chegava a Ferragudo e a casa da que conhecíamos com a Senhora Infanta. Era ela Dona Filipa de Bragança, neta de D. Miguel I. Naqueles fins de tarde, entre tartes de framboesa e limonada, com a luz do Algarve a entrar pelas janelas se falava do país, de história, das preocupações com o papel da família real. Só muito mais tarde percebi a importância dos muitos anos de trabalho político e diplomático iniciado nos finais da década de trinta que aquela Senhora, tão firme e tão austera mas que tinha sempre um cuidado especial para os mais novos, tinha tido no cumprimento do seu dever perante a História. Mas, por essa altura, era como uma viagem no tempo. A Mayerling e à conspiração para assassinar Rudolfo, o herdeiro do império austro-húngaro, desmentindo a tese do suicídio ou ao célebre retrato do homem de chapéu negro que tinha logo à entrada então conhecido como sendo do Infante D. Henrique e que ela nos explicava ser o de D. Pedro, o Infante das Sete Partidas. E reforçando sempre no que nos passava o sentido de serviço, razão de ser de cada episódio que nos contava.

É hoje amplamente conhecido o seu papel nas negociações com Oliveira Salazar para o estabelecimento em Portugal do seu irmão, Dom Duarte Nuno, Duque de Bragança, após a morte da Rainha Dona Amélia em Versalhes. Uma vez revogada, pela lei nº 2:040 de Maio de 1950, e ainda em vida desta, a lei do Banimento e Proscrição, que impedia na prática o regresso dos descendentes de D. Miguel e únicos representantes dos direitos dinásticos, havia que assegurar as condições para que tal acontecesse, garantindo dignidade e relevância para o que podia ser o futuro do país. Mas como sabemos era outro o jogo de Salazar: ainda em 1949, quando em Espanha Franco já tinha feito regressar Juan Carlos de Bourbon, preparando a sua sucessão e a solução monárquica, o presidente do Conselho joga com os monárquicos iludindo-os com jogos de bastidores e apresentando a bondade do regime na abertura à família real como prova da sua boa vontade numa possível (mas nunca de facto pensada) alteração de regime. E Dona Filipa, que conhece bem Salazar, nunca desiste. Se a Monarquia não volta por esta via, que consiga demonstrar aos portugueses a sua mais-valia, que o seu tempo não era de meses ou anos mas de gerações. Visita em França a Rainha já doente mas ainda bastante lúcida, volta com o irmão uma e outra vez, faz a ponte entre o Estado Português e a Família Bragança. É aliás ela quem a representa na abertura da exposição do Mundo Português em 1940. Até ao fim, como naquelas tardes, mais do que restabelecer a monarquia, tem como missão de vida garantir que os séculos de História que representa, esse enorme capital simbólico, se mantém vivo e válido para Portugal. Se Condestável defensor do Reino ainda houvesse teria sido com toda a certeza ela. E foi-o de certa maneira.

Mas não era a única Infanta a desempenhar o seu papel. Bem diferente na personalidade e na acção mas não no espírito, no sentido e na capacidade de decisão, a sua irmã Maria Adelaide. Resistente nazi, presa pela Gestapo, é salva da morte primeiro por Salazar, alegando a sua condição de cidadã portuguesa, e numa segunda deportação pelo exército soviético para a Sibéria por entre os papéis dos seus interrogatórios ter sido encontrada uma prova da sua ajuda a um resistente comunista. Assistente social e enfermeira, chega a Portugal em 1949. Na margem sul do Tejo para onde vai viver crescem a pobreza e a miséria. Será essa a sua luta até aos seus cem anos de vida. Critica abertamente o governo no sector da assistência social, está no terreno, resolve problemas, encontra soluções. Cria o que será depois a Fundação Assistência D. Nuno Alvares Pereira, fundamental no apoio aos mais carenciados daquela zona. Muitas vezes sem meios, não desistindo nunca. Exemplo de vida para muitos, talvez aquela que melhor personificou nos nossos dias, e até agora, o que deve ser alguém que nasce Infanta de Portugal. O pensar o outro, indiferente às conveniências políticas, focada no bem comum e no bem estar daqueles a quem servia. Real na ascendência e na vivência, o Estado Português reconheceria a sua obra concedendo-lhe o grau de Grande oficial da Ordem de Mérito Civil. Honra que a ela provavelmente pouco lhe terá dito, que o que contava eram as vidas que tinha mudado.

Filipa e Adelaide de Bragança, duas irmãs, duas Infantas, duas portuguesas. Presentes e activas na defesa do país e da sua população, como só pode ser quem esse papel herdou.

Voltemos ao retrato do príncipe português da casa de Ferragudo, hoje pertencente a Dom Duarte Pio, sobrinho de ambas. O percursor durante a regência de D. Afonso V das primeiras viagens atlânticas, o reorganizador das Ordenações Afonsinas, tradutor de Cícero, autor do Tratado da Virtuosa Benfeitoria, a grande influência do seu neto, o enorme rei D. João II. O primeiro Duque de Coimbra. Porque por estes dias se celebra o casamento de uma outra Infanta e de uma nova Duquesa de Coimbra, Maria Francisca, única filha dos Duques de Bragança. Que com a sua maneira de ser (tão portuguesa na generosidade e na abertura ao outro também) saiba demonstrar no século XXI e na nova vida que vai iniciar do que é feito uma Infanta Portuguesa: o serviço ao país, a ligação ao mundo português iniciado pelo primeiro detentor da honra desse ducado, uma missão de vida e uma enorme responsabilidade perante a História. Aquilo que verdadeiramente dá sentido a tudo isto. As virtuosas benfeitorias que, independentemente do regime, as vidas de Filipa e Maria Adelaide de Bragança representaram. O grande desafio de Maria Francisca, infanta de Portugal. Portugal e os portugueses precisam disso.

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