Aproximam-se as eleições na Rússia e todos já sabemos qual vai ser o resultado, a menos que haja por aí algum cataclismo, impossível de prever. Para a semana falamos do assunto mais detalhadamente; hoje preferia dedicar este espaço a falar de um fenómeno que tem cada vez mais adeptos: uma “nova” geração de homens-fortes que entraram na política internacional com o virar do século e que assentaram arraiais. Vierem para ficar, mudaram as constituições dos seus países e têm uma larga aprovação da população que governam. E cada vez mais, isolam a Europa e as suas convicções.

Estes líderes têm em comum, pelo menos, quatro elementos: (1) tiveram mão de ferro quando foi preciso pôr ordem na casa (leia-se o país) – independentemente dos atropelamentos aos direitos humanos; (2) souberam pôr fora de jogo os seus adversários políticos e económicos; (3) transformaram as instituições de forma a garantirem o reforço dos seus poderes; e (4) criaram novas formas de legitimidade relacionadas com nacionalismos, com o regate de identidades passadas e com o prestígio nacional e internacional dos países.

Recep Tayyip Erdoğan é um bom exemplo do primeiro ponto: quando o governo da Turquia lhe estava a escorregar – manifestações, distúrbios sociais, um golpe de estado (2016) – declarou estado de emergência, seguido, evidentemente, das prisões dos considerados detratores pelo regime – incluindo intelectuais, professores universitários, jornalistas, pessoas comuns a favor da causa liberal. A partir desse momento a Turquia não voltou a ser a mesma. Hoje encontramo-la muito mais fechada no que respeita às liberdades civis, à liberdade de expressão, à liberdade de imprensa. Aliás, em 2009, a poderosa cadeia de media turca pró-liberal Doğan Yayin foi obrigada a pagar 25 biliões de dólares por alegada fraude fiscal. Arruinou-se. Seguiu-se um efeito dominó de autocensura e produção de material laudatório ao chefe de estado.

Já Vladimir Putin foi exímio em disciplinar quer as oligarquias e quer as resistências democráticas ao seu regime. O atual presidente russo chegou ao Kremlin para substituir Boris Yeltsin e a barafunda que tinha deixado com a implementação descuidadíssima do mercado livre na década anterior – que deixou a porta aberta para qualquer oportunista enriquecer à custa das classes mais baixas – e por isso mesmo, os russos depositavam grandes esperanças no seu desempenho. Putin cumpriu o que esperavam dele. Uma liderança forte, um país mais estável (à custa de petrodólares), e prestígio internacional. Mas fê-lo por meios tudo menos democráticos. Por exemplo, pouco depois de ocupar a cadeira do poder, reuniu os oligarcas e disse-lhes claramente que podiam prosseguir os seus negócios desde que afastados da política. Mikhail Khodorkovsky, da petrolífera Yukos, tentou fazer-lhe frente e acabou exibido numa jaula nas televisões nacionais e internacionais. Quem não se quis submeter, exilou-se no estrangeiro. Quem ficou, alinhou com as regras do jogo. O mesmo, aconteceu com jornalistas e opositores ao regime. A maioria submeteu-se às novas regras – podem existir, desde que não façam muito barulho – e os que não o fizeram pagaram a sua rebeldia com penas de prisão ou com a própria vida – lembram-se do liberal Garry Kasparov? E da jornalista Anna Politowskaya?

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Quanto ao terceiro ponto, o das mudanças institucionais e constitucionais, os exemplos são cada vez mais – daí a justa preocupação com o crescente número de populismos. Como dizem os professores de Harvard, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, o método de transformação é lento e oportunista, aproveitando as ocasiões favoráveis para justificar um retoque aqui e outro ali. Em muitos casos, o golpe final na Constituição é dado por referendo – o que “comprova” que a vontade do líder é a vontade do povo (aliás, é importante distinguir quando é que um referendo é um ato democrático ou a forma de legitimar quem quer tudo menos democracia). Aqui, um exemplo típico é a Venezuela de Hugo Chavez que, segundo especialistas, entrou em “processo de erosão democrática” – em nome da retribuição da democracia ao povo – até chegar ao “autoritarismo”.

O quarto ponto está relacionado com as formas de legitimidade encontradas por estes líderes para se manterem à frente dos seus países sem grade resistência interna. São três: a primeira é um regresso ao passado, para compor uma nova forma de nacionalismo e orgulho patriótico, inflamado com posições de assertividade internacional. A segunda é a garantia da paz social e o aumento de rendimentos e esperança de vida das populações. O terceiro é aparecer como uma espécie de salvador de uma pátria em ruínas, que voltou a ganhar alma nacional e prestígio internacional. Uma espécie de culto de personalidade. Tudo isto pode parecer pouco a olhos liberais, mas é mais que suficiente para as populações que apoiam, em largas maiorias, os homens-fortes.

E agora podemos dizer: com os problemas dos outros podemos nós bem. Mas isso dos problemas dos outros não existe em política internacional. Senão vejam: é cada vez mais frequente ouvir-se defender que a europa está a passar por uma crise de lideranças, logo seguido de exemplos destes senhores referidos acima como “aqueles que sabem o que estão a fazer”. Ou seja, as lideranças fortes e quase sempre antidemocráticas, acabam por inspirar muitos, incluindo partidos políticos, relativamente a modelos que gostariam de seguir se fossem eleitos. Neste aspeto Putin e as suas relações privilegiadas com partidos nacionalistas/extremistas europeus, mostram que não há uma barreira que isole os homens-fortes dos estados democráticos. O que obviamente põem em risco a nossa forma de vida.

Noutra perspetiva, os homens-forte não têm amarras institucionais (ou têm poucas) que travem os seus desígnios, nomeadamente na política internacional. Por exemplo: a anexação da Ucrânia é-nos indiferente? Não me parece. A intromissão de Moscovo nas eleições democráticas europeias e norte-americanas, não tem importância? Parece-me que tem. E muita.

Ainda por outro lado: estes homens-fortes são modelos para um mundo onde a importância de democracia e do liberalismo (e a ideia que são os regimes mais propícios à procura da felicidade e à obtenção de prosperidade) é cada vez mais ambígua. Pensem na Hungria, e na Polónia. Adicionalmente, cada vez parece haver mais de líderes de estados democráticos que olham com simpatia para estes modelos – já se fala de Donald Trump e Narendra Modi – nacionalistas e pouco dados a quem lhes queira barrar institucionalmente o caminho. Há 20 anos acreditávamos que a liderança democrática e liberal, bem como o mercado livre, eram os modelos que todos no mundo quereriam seguir. Hoje não só esta ideia já caiu, como ameaça ser substituída por outros modelos que parecem já ter provocado efeitos de contágio. E a consequência, como se disse no início, é o isolamento cada vez maior da Europa e das suas convicções.