No sábado passado, Mariana Mortágua, a coordenadora do Bloco de Esquerda, foi visitar uma escola secundária na Amadora para falar do papel de Portugal na história da escravatura. Não é a primeira vez que uma dirigente dos bloquistas fala deste assunto. Em 10 de Junho de 2018, por exemplo, Catarina Martins veio pedir que os futuros “discursos oficiais”, reconhecessem “a enorme violência da expansão portuguesa, a nossa história esclavagista, a responsabilidade no tráfico transatlântico de escravos”. Mariana Mortágua, esteve, por isso, a dar continuidade a essa linha de intervenção política, e não surpreende que o tenha feito numa escola porque o grande objectivo do Bloco, neste campo, é espalhar a sua mensagem entre os jovens. Por outras palavras, isto é o Bloco de Esquerda a visar o seu alvo prioritário. Aliás, no mesmo dia em que Mariana Mortágua falava, na Amadora, das culpas de Portugal na escravatura, a socióloga e activista Cristina Roldão falava, em Lisboa, sobre a “descolonização” dos manuais escolares de História.
Mas voltemos a Mariana Mortágua e ao que disse na Amadora, sublinhando que tem, claro, todo o direito de ir onde quiser difundir a sua mensagem política. O que podemos contestar — como aqui farei — é o conteúdo dessa mensagem. E contesto-o porquê? Porque mistura verdades com mentiras, factos provados com conjecturas, coisas acertadas com falsas teorias. Sei que Mariana Mortágua não tem consciência disso, está apenas a reproduzir um mantra ideológico em que ela própria acredita. Mas faz mal.
É verdade que Portugal teve um papel muito importante no tráfico transatlântico de escravos. Entre as nações ocidentais foi mesmo o maior transportador. Mas é mentira, ou muito duvidoso, que tenha sido “o maior traficante de pessoas escravizadas de África”. Entre meados do século XV e 1822, data da independência do Brasil, Portugal transportou através do Atlântico cerca de 4,5 milhões de escravos africanos. Mas quando os primeiros portugueses chegaram às costas da África Ocidental e começaram a fazer esse transporte, já os estados muçulmanos haviam recebido através do Sara, do Índico e do Mar Vermelho, 5,7 milhões de pessoas negras, número que continuaria a subir pois o mundo muçulmano prolongou o tráfico de escravos até ao século XX. E houve, também, o tráfico intra-africano feito pelos potentados desse continente cujos números se ignoram, mas que terão sido aparentemente grandes.
Porque é que o Bloco insiste, então, na primazia absoluta portuguesa? Para acentuar o sentimento de culpa no país. Por essa razão exclui da sua narrativa tudo o que sirva para contextualizar e estabelecer comparações que possam de algum modo tirar o foco de Portugal. Ou seja, a sua é uma mensagem de vistas propositadamente curtas e estreitas, e historicamente coxa — logo, errada. Dito de outra forma, trata-se de uma simplificação típica de activistas políticos, insuficiente para quem deseje conhecer a verdade.
Mas passemos adiante, a um outro binómio verdade-mentira. É verdade que Portugal teve um papel naquilo que é “a ideia moderna de raça”, mas é falso que a formação do racismo actual seja uma “responsabilidade histórica” do nosso país e que o racismo tenha sido um mecanismo para desumanizar e justificar a escravatura e o tráfico de pessoas escravizadas, como Mariana Mortágua afirmou na Amadora. Na verdade foi ao contrário. Não foi o racismo que justificou a escravatura, foi a escravatura que ajudou a forjar o racismo.
Eu podia tentar explicar a Mariana Mortágua como e porquê isso aconteceu, mas como sei que, lá no Bloco, ninguém liga ao que eu digo, talvez seja melhor que a explicação lhe seja dada por João Figueiredo, um historiador de extrema-esquerda, conhecedor da matéria e que apesar de defender teses diferentes da minhas, ajudará Mariana Mortágua a perceber melhor. No último artigo que escreveu para o Público, essencialmente preocupado com a questão das reparações, Figueiredo explicou que foi só quando o tráfico já tinha acabado ou caminhava para o fim, que o racismo foi “sistematizado”. Ou seja, para ele a ideia de que os “sentimentos de superioridade racial estariam na base do tráfico transatlântico” é uma “teoria errada”. É certo que Figueiredo vai numa direcção diferente da minha, pois defende que o racismo nem justificou a escravatura nem resultou dela — como eu afirmo —, mas sim da aplicação de medidas de reparação no século XIX. Num ponto, porém, estamos de acordo (e em desacordo com Mariana Mortágua): é que utilizaram-se vários argumentos para justificar (e legitimar) o tráfico e a escravidão, mas nenhum deles foi racista.
Mariana Mortágua, porém, não abdica dessa sua explicação errada. Porquê? Porque assim sobrecarrega a responsabilidade e a culpa dos portugueses. O que o Bloco tenta injectar nas mentes das pessoas é que tendo sido Portugal o iniciador das viagens de descoberta marítima ao longo da costa ocidental de África e, consequentemente, do tráfico transatlântico de escravos, então teria sido o primeiro gerador de racismo — o racista primordial, digamos assim — e, portanto, o mais culpado. Ora, isso é falso.
Há quem se surpreenda de que, ao cabo de anos e anos de debate e de demonstrações de erros factuais ou teóricos, as pessoas do Bloco de Esquerda continuem a repetir ipsis verbis o que diziam em 2017. Eu também me surpreendi ao princípio, mas depois percebi que as gentes do Bloco têm uma cartilha, não se desviam dela um milímetro que seja e repetem-na à exaustão, até porque parecem ser estanques à aprendizagem fora da caixa. Quando o não são tendem a abandonar o Bloco de Esquerda, coisa que Mariana Mortágua ainda não fez, e talvez nunca faça. Por isso, foi verbalizar para a Amadora um entrelaçado de verdades com enganos, o que, como António Aleixo nos ensinou, descamba sempre numa mentira mais segura e penetrante.
E o entrelaçado a que me refiro não ficou por aqui. É verdade que no tempo de Salazar a história do envolvimento de Portugal na escravatura foi substancialmente desvalorizada — omitida, mesmo — mas é falso que, no presente, haja uma “negação nacional” do papel português no tráfico de escravos, como afirmou Mariana Mortágua. De há várias décadas para cá, há investigação, livros, debates, comunicações, filmes, entrevistas que abordam o assunto, assunto esse que faz parte do ensino da disciplina de História nas escolas básicas e secundárias, com suficiente destaque e desenvolvimento. Não tem qualquer semelhança com a situação existente no tempo de Salazar e eu sei-o, por duas razões. Uma delas é porque estive lá, nesse tempo; a outra é porque sou uma das pessoas que desde finais do século passado tem vindo a contribuir através de livros, artigos académicos, crónicas de opinião, entrevistas e, nos últimos anos, como participante activo num debate público, para que a população portuguesa esteja muito mais familiarizada com o tema e informada acerca dele.
Então, porque é que o Bloco não aceita que assim seja e fala, pela voz de Mariana Mortágua, em “negacionismo”? Porque precisa de fazer crer que o país está moralmente doente para lhe poder receitar uma cura. Porque é que não está satisfeito com o grau de conhecimento que já existe? Bom, porque o seu objectivo não é o conhecimento, é a culpa e, a juzante dela, o pedido de desculpa às vítimas — como Mariana Mortágua referiu na Amadora — e, depois, a reparação. Ora não há “negacionismo” nenhum. Tirando os que recusam sempre essa e outras evidências e conhecimentos, os portugueses não negam o seu papel na escravatura, mas não parecem dispostos a aceitar todas as carapuças que o Bloco quer enfiar-lhes e fazem bem. E sobretudo não acham que o reconhecimento do papel de antepassados seus na escravatura tenha de desembocar em pedidos de desculpa (que, por sua vez, desembocariam inevitavelmente em reparações) pois consideram que o reconhecimento desse papel nessa história tem de ser obrigatoriamente acompanhado pelo reconhecimento dos papéis dos outros intervenientes no processo, nomeadamente o dos africanos que participaram no negócio e o estimularam. Como escrevi há semanas, o tráfico de escravos foi uma parceria, coisa que as gentes do Bloco nunca trazem para a equação porque, se a trouxessem, isso atenuaria o papel e a responsabilidade dos portugueses, exactamente o contrário do que os bloquistas pretendem.
Como disse no início deste artigo, os dirigentes do Bloco de Esquerda têm o direito de ir onde quiserem expor a sua mensagem política. Mas já não têm o direito de passar essa mensagem para os manuais escolares e para o sistema de ensino, como se ela fosse uma verdade sacrossanta, quando, de facto, é falsa ou coxa. Deve, por isso, o governo redobrar de atenção para evitar que o Bloco consiga levar a sua avante.
PS: Quando terminava este escrito vi que Miguel Vale de Almeida sentiu necessidade de justificar, numa página de Facebook que é seguida por muitos milhares de pessoas, a razão pela qual me acusara de “manha retórica”. Disse ele que tinha sido por eu ter designado Joacine Katar Moreira apenas por Joacine, e fez notar que não o designo a ele, Vale de Almeida, apenas por Miguel. O antropólogo sugeriu, assim, que eu teria desvalorizado Joacine por qualquer razão que deixou subentendida. Ora eu quero dizer três coisas a Vale de Almeida. Em primeiro lugar, quero dizer-lhe que, na verdade, tratei a minha contraditora de duas formas: por Joacine e, também, por Joacine Katar Moreira, como qualquer pessoa de boa-fé — será o caso de Vale de Almeida? — poderá verificar no artigo em causa. Acresce que essa dupla forma de tratamento não implica qualquer desvalorização; é a que utilizo, por exemplo, para, em artigos da imprensa, referir o Presidente da República, pois tanto uso apenas Marcelo como Marcelo Rebelo de Sousa, como poderá ver-se aqui. A segunda coisa que quero dizer a Vale de Almeida, é que essa forma de designar tem uma razão de ser de ordem prática, que se prende com a fácil identificação. Se eu disser Joacine ou Marcelo toda a gente saberá a quem me refiro; se eu disser simplesmente Miguel ninguém o saberá. Só pessoas woke, como Vale de Almeida, é que hiper-interpretam tudo e vêem más intenções e razões para ofensa em coisas perfeitamente naturais. A terceira coisa que tenho de dizer a Miguel Vale de Almeida é que não aceito reparos nem recebo lições quanto a formas de tratamento de uma pessoa que, no Facebook, reproduzindo uma das baixezas do seu amigo Pedro Schacht — um académico difamador —, me trata por uma alcunha depreciativa. Sim, leitores, as coisas na esfera da esquerda woke descem frequentemente a este nível infanto-juvenil e chocarreiro próprio de alunos liceais. E, sim, leitores, Miguel Vale de Almeida é professor catedrático. Mas, ao que parece, não terá lá dentro uma vozinha que lhe segrede que tratar um seu semelhante, ainda que adversário político e ideológico, por uma das alcunhas que o tal Schacht lhe atribuiu é uma indignidade. Não tanto para mim, que, numa determinada fase da vida, fui professor no ensino secundário e lido bem com essas criancices, mas sobretudo para o próprio Vale de Almeida.