Avisaram-me pela enésima vez que um professor de Estudos Portugueses, Ibéricos e Lusófonos na Universidade de Ohio chamado Pedro Schacht Pereira continuava a difamar-me no Facebook. Desde que, há cerca de seis anos, comecei a participar no debate sobre escravatura tenho sido alvo de ataques pessoais por parte de várias pessoas de extrema-esquerda e geralmente não ligo. Desta vez, porém, fui ver com atenção e acho que vale a pena trazer o caso de Pedro Schacht à luz do dia não tanto pelas mentiras que difunde a meu respeito, mas pelo que elas revelam do modus operandi do wokismo.

Vejamos: Schacht diz, entre outras coisas, que já não sou historiador, mas sim romancista. Em primeira análise poder-se-ia pensar que haveria aqui uma simples falha de entendimento. Talvez Schacht não percebesse que para um historiador ser, também, romancista — eu escrevi, de facto, oito romances — é uma mais-valia e não um demérito. Talvez se tivesse esquecido de Alexandre Herculano, por exemplo, e não soubesse que o valor e a competência de Herculano como historiador não diminuiram pelo facto de ter escrito O Bobo e outros romances históricos. E talvez também não entendesse a natureza do saber histórico e, assim sendo, supusesse que os historiadores têm prazo de validade, como os iogurtes, ou que podem ser cancelados ou despromovidos quando envelhecem. Se calhar, em suma, não terá percebido que  um historiador vale pela sua obra, pelo saber acumulado, pela pertinência do seu olhar e, também, pela coragem e firmeza com que defende as suas ideias, independentemente da idade que tenha ou da sua situação institucional, e que, para isso, não precisa do aval ou do beneplácito de ninguém.

Mas se concluíssemos que essa primeira apreciação de Pedro Schacht a meu respeito não resulta de malícia e de uma tentativa de desclassificação, mas apenas de ignorância crassa, seríamos demasiado ingénuos e benevolentes, e estaríamos a cometer um erro. De facto, as outras acusações que me faz retiram-lhe todo o chão para o benefício da dúvida e são claríssimas quanto à sua intencionalidade e objectivos.

Pedro Schacht Pereira sabe perfeitamente que eu leccionei como convidado numa universidade — na qual, aliás, me doutorei —, e que fui durante 24 anos investigador do Instituto de Investigação Científica Tropical, devidamente integrado na carreira de investigação. É provável que também saiba, uma vez que gosta de fazer alarde de actualização bibliográfica, que eu continuo a ser citado e referenciado em obras recentes, como, por exemplo, em The Cambridge World History of Slavery, 2017 — que é neste momento, a obra colectiva máxima nesta área do saber histórico. Apesar disso, descreve-me depreciativamente aos seus leitores como — e cito-o  —  “um autodidata que se dedica ao estudo nas horas vagas”.

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Acusa-me, também, de ser alguém cujo trabalho não é escrutinado por nenhum “historiador sério”. Aliás, para Schacht Pereira os “historiadores sérios” não se envolveriam comigo po§r não me considerarem “um interlocutor válido”. Claro que essa primeira acusação é completamente ridícula pois eu já não tenho idade, interesse ou razões para andar a engordar o currículo, publicando a metro como, nesta infeliz era do publish or perish, os actuais académicos têm de fazer — ingloriamente, diga-se, pois pouca gente os lê. Mas para além de ridícula a acusação é falsa. Ainda há meia-dúzia de semanas a Análise Social, a revista do ICS, publicou um texto meu que foi escrutinado e aprovado por pares. Schacht tem conhecimento dessa publicação, tal como também tem conhecimento, e já há vários anos, da obra Who Abolished Slavery. Slave Revolts and Abolitionism: A Debate With João Pedro Marques, um livro publicado em Nova Iorque e Oxford, em 2010. Ora, esse livro não só passou pelo escrutinio de vários “historiadores sérios” como foi publicado em forma de debate com alguns dos melhores e mais “sérios” historiadores da escravatura. Que David Brion Davis (Universidade de Yale), John Thornton (Universidade de Boston), Seymour Drescher (Universidade de Pittsburgh) e mais oito prestigiados colegas tenham querido acompanhar-me na publicação daquele livro, alguns para concordarem comigo, outros para discordarem de mim, é, devo dizê-lo sem falsas modéstias, um motivo de orgulho. Orgulho que se prolongou pelos anos seguintes quando outros “historiadores sérios” — Ira Berlin (Universidade de Maryland), por exemplo — vieram prolongar e enriquecer o debate que eu desencadeara. Quem tiver curiosidade de ver como, em 2016, Berlin resumia as minhas posições e referia como a maioria dos participantes naquele livro/debate as apoiavam, poderá ver este vídeo (dos 8’25” em diante).

Algo de equivalente se passa em Portugal. Um exemplo, apenas: em 2019 fui convidado pelo historiador Manuel Bandeira Jerónimo (Universidade de Coimbra) para colaborar com um artigo no catálogo da exposição comemorativa da abolição da escravatura no império português, o que com muito gosto aceitei. Pedro Schacht não o ignora porque esteve presente — tal como eu estive — na inauguração da dita exposição e da apresentação do catálogo, na Assembleia da República.

É, portanto, verdadeiramente obsceno que, sabendo tudo isso, difunda a calúnia de que os colegas não me considerariam “um interlocutor válido”. Tal como é de uma torpeza sem limite que, conhecendo a minha publicação de 2010 e o intenso escrutínio a que esteve sujeita, se permita afirmar que a minha tese de doutoramento, elaborada na já longínqua década de 1990, terá sido, nas suas palavras, “o último projeto cientificamente escrutinado” que eu teria produzido.

Em suma, e como escreveu acertadamente uma das três ou quatro pessoas lúcidas que não se deixaram arrastar nas patranhas de Pedro Schacht e o confrontaram no seu mural (ou página) do Facebook, o que ele escreve a meu respeito é “má-fé, desvergonha e mentira”. De uma forma continuada ao longo de seis anos e no que a mim se refere, Schacht tem escondido, truncado, subvertido, deturpado, difamado. Porquê? Haverá certamente várias explicações para isso, mas aqui interessa-me apenas uma delas: Pedro Schacht é, nas redes sociais, um figurão ou farol woke e para quem o é, em certas circunstâncias, a mentira é a única arma que resta. Ainda que exijam debates sobre o tema da escravatura, os woke não querem debater coisa nenhuma, como a experiência destes últimos anos revelou à exaustão. O que querem é cortar a palavra aos que deles discordam. E quando isso não é viável, tentam demolir o importuno que os enfrenta e incomoda. A receita é simples: se não podem cancelar esse importuno, difamem-no. Sem capacidade para refutar, num jornal, aquilo que eu escrevo a respeito da história da escravatura, por manifesta falta de coragem e de conhecimentos sobre a matéria, e não podendo, para grande pena sua, cortar-me a palavra e cancelar-me, Pedro Schacht tenta atacar-me como pessoa e descredibilizar-me como historiador.

E como esse é o modus operandi do wokismo, há outros partidários dessa ideologia que acolhem as suas insinuações e calúnias, e que as ampliam. Há, por exemplo, a professora brasileira radicada nos Estados Unidos que me considera “patético” e que suspeita fortemente de que eu receba “uns trocos” de alguma entidade ou de alguém para dizer “baboseiras”; há a doutoranda portuguesa que, corroborando essa suspeita pecuniária, sugere que eu estaria a fazer o jogo “dos partidos nacionalistas, saudosistas do fascismo, e racistas-xenófobos”; há, também, um conhecido académico que proclama que não debaterá comigo porque não se rebaixa a debater com uma “mediocridade”.

Fico-me por estes três exemplos, acrescentando que há outras pessoas que se pronunciam de forma equivalente — ou seja, no grau zero da boa educação, da civilidade e da ética — e uma parte dessas pessoas lecciona em universidades norte-americanas, brasileiras, portuguesas, britânicas. Há, até, um ou dois catedráticos nesse pitoresco mas melancólico conjunto. E melancólico porque é verdadeiramente deprimente ver os termos em que essas pessoas se pronunciam no âmbito de um debate que deveria ter um mínimo de elevação. E fazem-no, importa sublinhá-lo, não no espaço privado e resguardado de um círculo de amigos, mas num suporte que, à data em que escrevo, é público, isto é, pode ser visto por qualquer utilizador do Facebook. Não quero generalizar e não pretendo sugerir que já não haja gente adulta e bem formada nas universidades — sei que a há, felizmente —, mas não posso ignorar o que vi na minha “visita de estudo” ao mural do professor Pedro Schacht Pereira. Esse mural diz muito sobre a área das Ciências Sociais e Humanas nos tempos que correm, e ajuda-nos a compreender um pouco melhor a reprodução do wokismo e dos seus métodos persecutórios entre as camadas universitárias.