1. Esta segunda-feira, Manuel Luís Goucha teve um convidado especialíssimo no programa da manhã da TVI. Escassos oito dias depois de ser divulgada uma versão preliminar de uma auditoria à CGD onde se relatavam, com deprimentes detalhes, os negócios mais ruinosos para o banco do Estado, o apresentador do “Você na TV” abraçou, elogiou e entrevistou (por esta ordem) um dos maiores devedores da Caixa — o incontornável Joe Berardo.
À entrada de um palácio onde um dos filhos de D. João I, o Mestre de Aviz, fez a sua “casa de campo”, Manuel Luís Goucha olhou para a câmara e perguntou, sem vestígio de ironia: “500 anos depois, quer saber quem é o dono disto tudo?”.
O “dono daquilo tudo” abriu a porta com um sorriso (houve muitos sorrisos) e um cachecol Carolina Herrera à volta do pescoço. Sem incómodo por tamanha exposição, o “comendador” Berardo, conhecido mundialmente pelo seu desmesurado amor às artes, mostrou alguns dos seus quadros, mostrou um contador alemão e mostrou o seu jardim ao estilo Renascimento italiano. Como brinde para os telespectadores, que estavam transidos no sofá, filosofou — insistindo que “nada nos pertence”, o que deve ter provocado suspiros nos contribuintes que estavam frente à televisão — e ouviu Goucha elogiar o seu “jeito para a comédia”.
Quase não houve referências a dinheiro, até porque não se comentam esses assuntos em público. Por exemplo: quando o entrevistador sussurrou que ter um palácio “obriga a muitos custos”, o entrevistado contrapôs, desligado desses problemas menores, que “também dá muito prazer”. No final, porém, Manuel Luís Goucha ergueu um copo de vinho e não resistiu a brindar “a todo este pujante património”. E a Caixa Geral de Depósitos? Bem, sobre esse “pujante património”, naturalmente, Joe Berardo não falou. Como sabem todos os patriotas, Portugal é assim.
2. No caso do bairro da Jamaica, os factos deixaram de interessar. De um lado, ninguém quer saber se houve excesso de uso da força: a farda abençoa e exonera. Do outro lado, ninguém quer saber se houve agressão: a classe social ou a cor da pele ungem e absolvem. Sendo assim, percebe-se: no meio de tanta santidade política, de tanta justa indignação e de tanta vontade de combate, os tristes factos só atrapalham.
Logo de início, Joana Mortágua viu no vídeo aquilo que ele não mostrava e escreveu: “São 4 minutos de violência policial”. Na realidade, não são. Até podemos vir a concluir que aqueles quatro minutos mostram, em alguns momentos, uma “violência policial” excessiva, mas para já não há qualquer dúvida de que não mostram apenas isso. Numa análise segundo a segundo (como aquela que o Observador fez), vê-se um suspeito a resistir à detenção e vários familiares a tentar impedir que a PSP o leve — e vê-se ainda três pessoas a atacarem a polícia.
Já António Costa e Nuno Magalhães viram o vídeo mas na realidade sentiam que não precisavam de o ver. No parlamento, o primeiro-ministro foi preocupantemente taxativo: “O nosso lado é sempre o lado das forças de segurança”. Em entrevista ao Observador, o líder parlamentar do CDS foi absolutamente assertivo: “Não falhamos à polícia e não temos dúvida de que lado devemos estar”. Na realidade, o vídeo da atuação da polícia no Jamaica aconselharia, a um e a outro, prudência e recato até a investigação ao que se passou ter terminado.
Se um habitante de um bairro da periferia de Lisboa violar a lei, deve ser punido. Se um polícia violar a lei, deve ser punido. Se os dois violarem a lei, um a seguir ao outro, devem ambos ser punidos. Já sei: dizer isto, que deriva do equilíbrio e do bom senso, parece hoje em dia uma excentricidade. São ideias antigas, a que falta a “modernidade” que excita e comove. Mas são ideias que unem uma comunidade e a perpetuam: o Estado de direito, a Justiça cega, a igualdade de todos perante a lei — fracos e fortes, para o bem e para o mal. Quando perdermos isso, perdemos tudo.
3. Marcelo Rebelo de Sousa teve uma epifania. Aliás: teve mais uma epifania. Em 2012, quando hesitava sobre uma candidatura a Belém, confessou: “Há de haver um momento em que a Providência, que é sábia, me há de dar o sinal”. Presume-se que terá dado. Agora, em 2019, quando dizia oscilar entre tentar continuar em Belém ou não, chegou novamente um sinal divino. Depois da confirmação de que as Jornadas Mundiais da Juventude serão em Portugal, o Presidente confessou uma “grande vontade” de se recandidatar, caso não haja “ninguém em melhores condições para receber o Papa”. Longe de mim querer usar esta coluna para, imitando o Presidente, misturar religião com política, mas não há outra forma de escrever isto: Deus nos ajude.