Domingo, 20 de janeiro de 2018. Um vídeo amador publicado na rede social Facebook e, depois, em vários órgãos de comunicação social, mostra uma intervenção policial no bairro Vale dos Chícharos, mais conhecido por Jamaica, no concelho do Seixal. Os autores do vídeo falam em racismo e em violência policial contra uma família do bairro e as reações ao caso são rápidas. Todas corroboram que houve uso excessivo da força. Escassas horas mais tarde, a Direção Nacional da PSP emite um comunicado a explicar que a ação policial divulgada no vídeo foi consequência “do arremesso de vários objetos e de ações físicas agressivas” contra a polícia — uma parte que o vídeo não mostra. Mais: que a família envolvida tentou “impedir que a polícia exercesse a sua autoridade e consumasse a detenção” do principal suspeito. Ainda nesse dia, o comandante distrital da PSP envia um e-mail aos seus homens a informar que o vídeo não mostra toda a ocorrência e que a intervenção foi legítima — embora anteveja que possa ser alvo de críticas.

O Observador analisou ao pormenor o vídeo, que mostra um suspeito a resistir à detenção e vários familiares a ajudá-lo e a tentar impedir que a PSP o leve. Nestes minutos, a polícia reage com violência, aponta armas de fogo aos moradores, é atacada por, pelo menos, três pessoas, e acaba a imobilizar o suspeito no chão, dando-lhe de seguida com o cassetete. Segundo a lei, a polícia pode disparar em circunstâncias muito específicas. Uma delas é quando o suspeito resiste à detenção, outra quando há uma agressão ao polícia ou a terceiro. Os dois casos existiram. Ainda assim, a PSP, nesta fase dos desacatos, não abriu fogo.

A PSP foi chamada ao Bairro da Jamaica pelas 7h15 por causa de um desacato. Segundo as declarações de uma moradora do bairro que aparece no vídeo — e que é irmã do suspeito detido, — a polícia terá sido chamada por umas raparigas com quem se incompatibilizou durante a noite anterior e que regressaram ao bairro de “facas nas mãos”. As tais mulheres teriam estado numa festa num café do bairro e Higina, com quem o Observador falou, entrou num “bate boca” com uma delas. “Agrediram-me e todos os que estavam aqui na festa acompanharam-nas à saída do bairro. Já de manhã, voltaram aqui com facas e queriam-me espetar”, contou.

Em comunicado, emitido logo após o vídeo do caso começar a circular nas redes sociais, a Direção Nacional da PSP confirmou que os agente da Cruz de Pau foram chamados para “uma desordem entre vários indivíduos do sexo feminino”.

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Só que, chegados ao local, os polícias terão sido recebidos à pedrada, diz o mesmo comunicado, que relata que um dos agentes foi atingido na boca e teve “necessidade de receber tratamento hospitalar”. Num e-mail enviado pelo Comandante da PSP de Setúbal aos seus operacionais, o intendente Viola da Silva diz que foi enviado um carro-patrulha, depois reforçado por uma carrinha da Equipa de Intervenção Rápida. E que o local é “um bairro de muito difícil atuação para a PSP, não só pela grande hostilidade que muitas pessoas que lá habitam tem para com as forças de segurança, mas também pela grande degradação dos edifícios que lá se encontram semiconstruídos”.

A versão do suspeito que acabou detido é outra. Hortênsio Coxi, 31 anos, diz que foi ver o que se passava à entrada do bairro e, nesse momento, um polícia deu-lhe um “encontrão”. “Bato com a coluna no pilar e quando volto para a frente ele dá-me logo com o bastão na cabeça e os dois colegas dele também começaram logo a dar com o bastão na cabeça. Aí eu tento correr, escorreguei … continuaram a dar me pontapés”, disse à TVI, num episódio que não terá sido captado pelo vídeo que aqui se mostra. “A minha mão toca no lábio do agente e fez-lhe um ligeiro corte no lábio”, explicou à TVI, referindo-se, aparentemente, ao elemento da PSP que ficou ferido na boca. “Eu consegui fugir, mas mesmo assim eles continuaram a correr. Foi quando eu comecei a correr para fora do Jamaica”. Hortênsio diz que depois correu para casa para pedir ao pai que o levasse ao hospital, uma vez que sangrava muito. Será a partir desse momento que o vídeo começa a ser gravado, vendo-se o pai a tentar impedir a detenção. Recorde-se que, horas depois, foi a PSP quem levou o suspeito ao hospital.

O vídeo que chegou às redes sociais, e que foi captado da varanda de uma das torres inacabadas do bairro conhecido por Jamaica, mostra a ação policial já depois do alegado apedrejamento — ou dos alegados confrontos, na versão do jovem detido — e na altura em que a PSP o tenta deter, por ser o principal suspeito da agressão a um polícia. O suspeito é irmão de Higina, a mulher que disse ao Observador ter estado na origem dos desacatos com raparigas de fora do bairro.

Segundo o comandante Viola da Silva, no e-mail enviado aos seus operacionais, a PSP foi mesmo obrigada a disparar três vezes a shotgun para o ar. Essa ação terá acontecido antes deste vídeo e durante o alegado apedrejamento, razão pela qual não se vê nas imagens.

O Comando da PSP enviou ao local um carro patrulha, com dois homens. Dada a forma como foram recebidos e as características do bairro, pediram reforços logo de seguida. E assim foi acionada a Equipa de Intervenção Rápida, que normalmente é composta por oito polícias e que é chamada em casos onde é precisa uma intervenção mais musculada.  No vídeo contam-se pelo menos 9 agentes no local. O décimo elemento seria o polícia ferido. Mesmo que tivessem sido chamados ao local reforços da Unidade Especial de Polícia, dificilmente teriam chegado a tempo de evitar o caso — que acabou na detenção do suspeito.

A Direção Nacional da PSP diz que teve de usar a força “estritamente necessária para pôr cobro às agressões de que estavam a ser alvo, para repor a ordem pública e, ao mesmo tempo, para consumar a detenção do suspeito de agressão ao polícia”. Neste momento no vídeo, não se vê uma agressão por parte do pai do suspeito, mas uma tentativa de impedir a atuação policial, ou seja, a detenção do filho.

Segundo as regras impostas à atuação da polícia, a força física é justificada quando um suspeito — ou alguém no mesmo local — tenta resistir ou impedir uma detenção. A lógica é a mesma em casos diferentes, como por exemplo as cargas policiais em manifestações: se, à ordem para dispersar, comunicada pelas  forças de segurança, uma multidão não abandonar o local no prazo (normalmente de alguns minutos) definido pela polícia, a carga física é justificada pelo crime de desordem pública e pela desobediência à autoridade.

Neste caso, segundo as regras, estava cumprida a condição de haver alguém a resistir a uma ordem — ou, no caso do pai, a tentar impedir que ela fosse cumprida. A questão poderá estar na proporção da força aplicada — assim que o homem se põe entre os agentes e o filho, tentando afastá-los com o braço, parece ser atingido, de imediato, com um soco. Foi o estritamente necessário naquele momento? A polícia garante que sim.

O “parece” é também um elemento importante, que se aplica a outros momentos do desacato. Além da condicionante de não haver imagens do que aconteceu antes desta intervenção específica — impossibilitando uma certeza entre a versão da polícia e a do suspeito —, a qualidade do vídeo, gravado por um telemóvel, também dificulta a avaliação de alguns gestos. O mesmo se aplica igualmente em situações que acontecem atrás de obstáculos à visão de quem assiste às imagens, como os carros ali estacionados e que veremos mais à frente.

O comandante da PSP de Setúbal, no e-mail que enviou aos operacionais que estiveram no terreno, diz que foram disparados três tiros de shotgun para o ar. Esses disparos não são registados pelo vídeo amador, poderão ter ocorrido antes. Não se percebe pelas imagens toda a escalada da ocorrência e os meios que a PSP foi empregando. No entanto, no que se consegue ver, percebe-se que a PSP começa primeiro por tentar imobilizar o pai do suspeito que impede que ele seja detido.

Depois, os próprios polícias são abordados por três outras pessoas, que os tentam impedir de chegar ao suspeito: a irmã tenta atingir os agentes e agarrá-los, um outro morador pontapeia — ou, pelo menos tenta — as costas de um agente, e a mãe do suspeito, depois de já ter sido atirada ao chão por ter agarrado um dos agentes, pega num objeto (impossível de identificar no vídeo) e tenta atingir a polícia, não sendo possível perceber se conseguiu.

A certa altura, vê-se um polícia de arma na mão a tentar acalmar os ânimos, sem, contudo, disparar. O facto de estarem a ser confrontados — com estas tentativas de agressão — por cada vez mais pessoas, segundo as regras de atuação da polícia, pode justificar a escalada do uso da força, para tentar evitar que a situação se descontrole.

A lei nada refere quanto aos momentos em que o polícia pode ou deve apontar uma arma, apenas define quando a pode disparar. No entanto, faz parte da formação policial perceber que em momentos críticos, em que a ameaça o justifique, a presença da arma apontada pode, como elemento dissuasor, ajudar a travar determinado comportamento. Segundo a lei, um polícia pode, primeiro, disparar como advertência. E só pode disparar a arma de fogo contra o suspeito se a ameaça não puder ser contida de outra forma menos grave — e apenas quando estiverem em causa crimes puníveis com mais três anos de cadeia.

Neste caso, entre a confusão que se instala, vê-se um polícia a apontar a arma aos moradores, na tentativa de os demover, e para travar os desacatos. A Constituição da República prevê que os agentes policiais atuem de acordo com os “princípios da igualdade, da proporcionalidade, da necessidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé”. E o regime jurídico de utilização de armas de fogo e explosivos pelas forças e serviços de segurança define em que situações podem ser usadas.

Nenhum deles impede o agente de, na avaliação que faz da situação, usar a arma — limitando-se a apontá-la — para impôr a autoridade, por exemplo.

Os disparos de advertência, ou seja, tiros para o ar, podem ser feitos “desde que seja de supor que ninguém venha a ser atingido”. A advertência pode, depois, ser repetida em casos de “ajuntamento de pessoas”, como parece ter sido o caso — apesar de o vídeo não mostrar o que alegadamente levou aos disparos de shotgun ou em que momento foram feitos. O que as imagens mostram terá acontecido já depois, quando os disparos de advertência para o ar parecem não ter resultado, o que pode servir de justificação para o uso da força física.

Já para “repelir” uma agressão contra os polícias ou terceiros, quando exista perigo de morte ou de agressão ou para deter um suspeito que resista à autoridade no momento da sua detenção, a polícia pode disparar em direção ao suspeito. No entanto, tem de o fazer de acordo com ordens superiores.

O vídeo mostra que a arma apontada e o uso da força por parte da polícia nos momentos anteriores não travou a ação dos familiares. Assim que se levanta do chão, a irmã do sujeito volta a empurrar um dos agentes e tenta, de novo, impedir a detenção. A avaliação do que se segue é difícil porque, como já foi referido, acontece atrás dos carros ali estacionados.

Percebe-se que ambos (irmã e suspeito) estão no chão e que um polícia coloca o pé em cima de um deles (aparentemente, o jovem que estava a ser detido). Fonte policial garante ao Observador que é uma prática comum na manobra de algemamento de um suspeito, mas as imagens não permitem perceber se era necessária porque não mostram a atitude ou o comportamento do jovem naquele momento.

O mesmo polícia muda depois de posição, baixa-se em direção ao chão e bate, aparentemente, no suspeito, com o cassetete. Neste caso, fonte policial explicou ao Observador que haverá poucas justificações para usar, desta forma, o cassetete quando o suspeito já está imobilizado e no chão. Fonte da PSP diz, contudo, que o agente em causa alega que o suspeito estava a resistir à detenção e que, por isto, teve de usar o cassetete. Não se sabe se, neste momento, já estaria ou não algemado. A família diz que o suspeito sofreu vários ferimentos e que ficou com uma orelha cortada. Presente a tribunal no dia seguinte, o suspeito acabou libertado com uma data para comparecer em tribunal para julgamento sumário.

[Veja a seguir todo o vídeo com a descodificação do que aconteceu, segundo a segundo]

Logo no domingo, depois de o vídeo ter começado a circular nas redes sociais, mesmo através de deputados — como Joana Mortágua do Bloco de Esquerda — indignados com o que viam, a Direção Nacional da PSP decidiu instaurar um inquérito interno para esclarecer o que aconteceu e avaliar se os agentes respeitaram todas as regras de atuação da polícia em casos como este. Será a Inspeção Nacional da PSP a analisar o caso e a perceber se houve ou não violência policial. Na segunda-feira, também o Ministério Público disse que ia abrir um inquérito ao caso, depois de o SOS Racismo ter dito que ia apresentar queixa.

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Já o comandante da PSP de Setúbal, intendente Viola da Silva, antecipou-se às conclusões e enviou um e-mail aos seus operacionais a dizer que em situações destas não existe outra forma de “de enfrentar indivíduos que apenas querem é agredir de forma gratuita os agentes de autoridade que simplesmente procuram cumprir a sua missão”. O oficial apoiou todos os polícias que estiveram naquele local.

O Comandante Distrital da PSP de Setúbal, Viola da Silva, diz que quando a polícia abandonou o local foi novamente apedrejada. O vídeo não mostra a PSP a chegar nem a abandonar o bairro do Vale dos Chícharos, mais conhecido por Jamaica, o que podia trazer dados novos e importantes à história. O oficial da PSP diz mesmo que apenas  “mostra a intervenção policial na parte que interessa aos desordeiros, não mostrando a parte inicial onde se poderia verificar o apedrejamento de que o pessoal foi alvo e que levou à intervenção”.

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