O que se passa em Gaza trouxe-me à memória uma cena de Lawrence da Arábia, o filme de David Lean estreado em 1962. Trata-se de uma cena nocturna, já na parte final do filme, na qual o exército árabe, liderado por T. E. Lawrence, avança em direcção a Damasco. Vêem-se, ao fundo, à sua esquerda, os clarões das explosões e ouve-se o troar dos canhões britânicos a massacrar as defesas turcas. De facto, seguindo uma outra rota, que vinha de Jerusalém, o exército do general Allenby, com a Australian Mounted Division na vanguarda, tentava chegar antes dos árabes a Damasco e procurava, com o peso da sua artilharia, esmagar de forma rápida os turcos.
O som e a amplitude do bombardeamento eram a tal ponto impressionantes que, ao lado de Lawrence, o xerif Ali exclamou:
— Deus ajude os homens que estão debaixo daquilo!
— São turcos — objectou Lawrence.
— Deus os ajude — insistiu Ali.
Quando leio o que se passa em Gaza sinto o que sentia o xerif Ali. Aliás, eu já o sentia mesmo antes da operação militar israelita se iniciar porque não era difícil antecipar o que iria acontecer. É improvável que haja alguém com os sentimentos no sítio certo que não se impressione e comova com o pesadelo que a população civil na faixa de Gaza está a viver sob as bombas israelitas e o “fogo amigo” que por inépcia ou azar cai sobre o alvo errado, como aparentemente sucedeu no caso do bombardeamento do hospital de Al-Ahli al-Arabi na cidade de Gaza. Milhares de pessoas mortas e feridas, muitas delas crianças, um milhão ou mais de desalojados, vendo a sua vida e a dos seus familiares e amigos ruir à frente dos seus olhos.
O drama dessas pessoas não pode deixar de suscitar compaixão. A gente de extrema-esquerda também sente essa compaixão, mas converte-a em revolta, cegueira selectiva, activismo político e desejo de retaliação. Em certos países, como, por exemplo, no Reino Unido, milhares de pessoas agitando ou ostentando bandeiras palestinianas e empunhando cartazes alusivos ao que se passa em Gaza encheram, no fim de semana passado, os centros das cidades, exigindo a libertação da Palestina, atacando Israel e sugerindo, até, o varrimento desse país do mapa político da região (From the river to the sea, Palestine must be free).
A nossa extrema-esquerda movimenta-se de forma análoga, promovendo manifestações, publicando abaixo-assinados e artigos na imprensa. E a primeira coisa que salta à vista é o contraste entre as suas profusas manifestações a favor das populações palestinianas e a escassez ou inexistência de manifestações a favor das israelitas. Foram elas as vítimas iniciais, mas são invisíveis aos olhos e às almas dos nossos radicais de esquerda.
Sim, eu sei que a extrema-esquerda tem um entendimento diferente do que sejam as vítimas iniciais. Diz-nos até à exaustão que isto não começou a 7 de Outubro e remete-nos para momentos e factos anteriores, fazendo-nos viajar até 1948 ou mesmo até mais atrás. Mas isso, neste contexto, é areia para os nossos olhos e um escabroso apagamento da compaixão de que também as vítimas israelitas são merecedoras. Em história e em política podemos recuar até onde quisermos e eu posso ir até Maomé ou até aos tempos bíblicos para situar a relação dos judeus com os outros povos da zona. Posso, até, de causa em causa, retroceder até Adão e Eva. Todo esse interminável recuo vai baralhar e complicar desnecessariamente este quadro pois, como dizia Paul Veyne, um extraordinário historiador francês, morto no ano passado, não precisamos de estender uma longa passadeira até Carlos Magno para percebermos um acontecimento na França actual. Analogamente, não é imprescindível conhecer todo o processo da instalação e expansão do Estado de Israel no pós-guerra para nos indignarmos com o abominável ataque dos terroristas do Hamas a populações que estavam pacificamente em suas casas ou num festival o ar livre, e que foram trucidadas e violentadas pelos guerrilheiros palestinianos. O balanço até agora? 1.400 mortos e cerca de 200 reféns, muitos dos quais mulheres, bebés e crianças.
A extrema-esquerda — com honrosas excepções, como é o caso de Rui Tavares — passa sobre isso como cão por vinha vindimada. É verdade que todos os esquerdistas começam por garantir que condenam o Hamas. Mas é um mero formalismo retórico, um preâmbulo da praxe, porque o seu foco não está aí. O ponto alto — ou baixo, se se preferir — desta narrativa desviada e sectária é um texto colectivo assinado por figuras gradas do esquerdismo nacional (Fernando Rosas, Isabel do Carmo, Manuel Loff, etc.) onde a palavra “Israel” aparece por dez vezes, e onde se elencam extensamente os incumprimentos e malfeitorias desse país e do seu povo, ao longo do tempo, mas não há uma única — repito: uma única — referência explícita ao Hamas.
Ou seja, na narrativa da esquerda radical o Hamas passa por entre os pingos da chuva. De facto, essa organização terrorista está ausente ou tem uma presença apenas discreta na maior parte dos textos que os nossos esquerdistas têm produzido a este respeito e neste contexto, como se ela não fizesse parte da equação ou como se fosse o transeunte que passou inocentemente por ali e já se afastou por a sua presença ser inócua ou dispensável. Isto é pura parcialidade, manipulação dos factos e sonegação das provas. Todos sabemos que foi o Hamas que desencadeou este pesadelo, quando, no passado dia 7 de Outubro, levou a cabo um ataque terrorista sobre populações civis, com a agravante de estar perfeitamente ciente de que estava a desencadeá-lo, mas a extrema-esquerda prefere fingir que não percebe isso.
E porquê? Porque quer iludir a questão política e militar central na presente conjuntura em Gaza. De facto, todas as manifestações emotivas, exaltadas, inflamadas, das figuras da nossa extrema-esquerda escamoteiam que não é possível vencer o Hamas, acabar com esse grupo terrorista, sem atingir a população civil. Como Joe Biden disse há pouco, “(o Hamas) usa famílias inocentes em Gaza como escudos humanos, colocando os seus centros de comando, armas e túneis de comunicação em zonas residenciais. Os palestinianos estão a sofrer muito também.” Uma vez que o Hamas se protege atrás da população palestiniana, se confunde com ela e a usa cobardemente como escudo, não é infelizmente viável derrotá-lo sem causar grandes baixas de gente inocente. A extrema-esquerda omite esse facto essencial. Não o faz por falta de inteligência nem por ignorar que o uso de escudos humanos é uma prática recorrente na actuação de organizações terroristas, com uma longuíssima tradição na história do terrorismo e da guerra na Ásia, mas por patente e repugnante má-fé.
Quem estiver de boa-fé e perceber que o Hamas é execrável e que os seus métodos de acção política põem em causa o atingimento de uma mais do que desejável solução pacífica e equilibrada para o problema da Palestina, sentirá aquilo que sentia o xerif Ali a caminho de Damasco, mas saberá, como ele sabia, que não há outra forma de vencer este inimigo. É esse dilema moral que a nossa compaixão não pode iludir ou perder de vista. Ele está lá e é incontornável. O que podemos fazer é esperar que Israel use a sua superioridade militar e as suas armas com a contenção necessária, com a força suficiente mas não excessiva e com a humanidade e compaixão possíveis neste dificílimo contexto. No momento em que escrevo chega-me a notícia de que o governo israelita autorizou a ajuda humanitária a Gaza, através do Egipto, o que é um sinal de que talvez seja possível conciliá-la com a derrota e o desmantelamento do Hamas.
Esperemos que sim.