Gukesh Dommaraju, de 18 anos, tornou-se o mais jovem campeão mundial de xadrez da História ao vencer o detentor do título, o chinês Ding Liren, de 32 anos, numa “reviravolta dramática”, escreve a BBC. Depois da final, disputada em Singapura, Dommaraju foi recebido como um herói em Chennai, no regresso à sua Índia natal.
Ignoremos por momentos o facto de um indiano já antes ter vencido o Campeonato Mundial de Xadrez: Viswanathan Anand, em 2000, já que a memória colectiva é tão curta. Que sinal mais evidente dos tempos de mudança que vivemos, não tardou a escrever-se. A Índia a bater a China no mais emblemático dos jogos de estratégia, depois de a ter ultrapassado também enquanto país mais populoso do mundo e economia que mais cresce. E tudo isto num jogo que, ainda agora, estava no centro da mesa das mais chiques salas de estar ocidentais, símbolo de erudição e estatuto, mote para debater (em vão) com a morte no cinema de Bergman, alegoria da Guerra Fria nos longos anos de duelo Bobby Fischer vs. Boris Spassky, em que nem os presidentes de, respectivamente, E.U.A. e U.R.S.S. resistiram a intrometer-se.
Sucedeu isto, curiosamente, poucos dias antes do Dia Internacional das Migrações. Pretexto para a divulgação de um estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos, segundo o qual 63% dos portugueses poderão querer uma diminuição do número de imigrantes do subcontinente indiano em Portugal, e 68% achar a nossa política de imigração “demasiado permissiva” – a mesma percentagem, no entanto, que concorda que os imigrantes “são fundamentais para a economia nacional”.
Este Barómetro das Migrações, que incluiu pela primeira vez questões acerca do sentimento dos portugueses relativamente aos imigrantes provenientes de Índia, Nepal ou Bangladesh, contém ainda muitos outros indicadores que dariam belíssimos começos de conversa. Como o facto de 67,4% dos inquiridos acharem que os imigrantes contribuem para o aumento da criminalidade, receberem mais do que dão à Segurança Social, ou 42% sobrestimarem o real número de imigrantes em solo português.
Felizmente, não é uma originalidade lusitana. Como recorda Miguel Romão no Diário de Notícias de ontem, dados do Our World in Data mostravam, ainda este Outubro, os italianos a acreditarem ter 21% de população imigrante, quando, na verdade, ela não vai além de 11; a Polónia convencida de uns 15% e não ter mais de dois; ou até o sofisticadíssimo e longínquo Japão, preocupado por ver a mancha de imigrantes corresponder já a um décimo do país e, na realidade, ela não ir para lá daqueles mesmos dois pontos percentuais.
É curioso ver isto acontecer em povos há tanto tão dados à emigração, com “E”, como italianos, polacos ou portugueses. O semelhante passa-nos despercebido e o diferente salta-nos à vista. É, provavelmente, um fenómeno mais da ordem da oftalmologia do que da xenofobia. Ainda por cima, como diz o Miguel no mesmo texto, calha aos imigrantes, em particular aos do Hindustão, desempenharem tipicamente tarefas muito visíveis: a fazerem entregas, a conduzirem carros de aluguer, a servirem às mesas, a pedalarem com sisifescas mochilas verdes ou amarelas fluorescente às costas. Como não os ver em todo o lado?
É claro que, a tudo isto, acrescem as diferenças na cor de pele e nos costumes culturais, materializados na forma de vestir, rezar, comer ou reunir em público. E que tudo isso contribui mais facilmente para uma ideia de invasão ou ameaça às tradições ou modo de vida de um lugar. Mas é interessante ressalvar como, neste mesmo barómetro citado anteontem pela Lusa e aqui no Observador, se assinala um “decrescimento da desconfiança em relação aos grupos tradicionais de imigração para Portugal”, como a África ou o Brasil, percepcionados agora pelo ângulo óbvio, debaixo das aparências: a sua enorme proximidade cultural para connosco.
Ao tempo de dramáticas transformações geopolíticas e económicas que vivemos corresponde outro de tensões entre comunidades e, em particular, contra os grandes movimentos migratórios. Mas, enquanto populações locais e migrantes, sentindo-se ambas ameaçadas, tenderão apenas a comportar-se de forma mutuamente mais hostil, vale a pena notar quão relativa pode ser a ideia de diferença. E até que ponto todos somos migrantes ou descendentes deles, feitos de uma amálgama de tradições culturais, recolhidas de toda a parte e que, há muito, se inspiram reciprocamente.
Como o xadrez, que até nasceu do chaturanga, jogado pelo menos desde o século VII… na Índia.