Um em cada três norte-americanos acredita na Grande Substituição. Isto é, a substituição da população norte-americana por imigrantes como resultado da conspiração de um grupo de poderosos que tem por objectivo os ganhos eleitorais e a alteração da cultura e do modo de vida americanos. Para 32% da população adulta dos Estados Unidos esta é uma prática em curso, não uma teoria. Vimo-la agora pelos olhos de um adolescente após o massacre que levou a cabo em Buffalo. Tem ganhado força e visibilidade desde a eleição de 2016 quando o valor dos factos caiu e a cultura da pós-verdade cresceu e se consolidou. Tal como aconteceu com a infame Pizzagate, cujo início foi anterior à eleição, uma cabala de líderes pedófilos do Partido Democrata, entre os quais Hillary Clinton e John Podesta, que abusariam de crianças em rituais satânicos, numa cave por baixo de uma pizzaria, em Washington – a Pizzagate foi reforçada com o suicídio de Jeffrey Epstein. Ambas as conspirações, a mais e a menos sofisticada, foram propagadas pela alt-right.
Como disse o excelente Umberto Eco numa das suas apresentações no Festival Milanesiana, «as conspirações reais, não são misteriosas porque são imediatamente descobertas; ou porque fracassaram, como a conspiração para matar Napoleão III, ou porque foram bem-sucedidas, como o assassinato de Júlio César.» As conspirações misteriosas, por outro lado, são infindáveis, insondáveis, incontestáveis, portanto, são instrumentos de poder. Popper, explicou Eco, analisou muito bem a teoria conspirativa da sociedade: um fenómeno social específico tem a sua origem num grupo de poderosos a quem esse fenómeno interessa ou beneficia. A teoria conspirativa será, segundo Popper, «um resultado típico da secularização de uma superstição religiosa»: o lugar vazio dos deuses é ocupado pelos grupos de poderosos e pelas suas intenções ocultas que é preciso revelar. No caso norte-americano será isto e o núcleo paranoide social do grupo alt-right.
Le Grand Remplacement, A Grande Substituição, expressão e teoria que ouvimos mais uma vez da boca de Zemmour durante a sua última campanha eleitoral, tal como já havíamos ouvido em 2017, é o título de um livro de Renaud Camus, de 2012, onde se defende que a Europa branca sofre uma colonização inversa que a extinguirá conforme a conhecemos. Os estrangeiros não serão integrados porque não são assimiláveis nem em número nem em cultura ou civilização. Segundo Camus, este processo conduzirá a uma alteração étnica e civilizacional.
Esta teoria tem tido dois tratamentos diferentes nos Estados Unidos para onde migrou: os supremacistas brancos e a alt-rightadoptaram-na para falar do «genocídio branco» e de identitarismo – falei aqui, no Observador, de Richard Spencer que tem difundido amplamente The Great Replacement; o Partido Republicano, e não falo das suas franjas mas de 36% dos seus membros, tal como a direita nacionalista europeia, utilizam-na para o reforço das políticas anti-imigração, anti-globalismo e anti-multiculturalismo.
Na realidade, Renaud Camus cunhou uma expressão para algo que já existia e já havia sido tratado principalmente por Alain de Benoist, o grupo GRECE e a Nouvelle Droite – Benoist também aqui referido a propósito da admiração que inspira em Dugin, cujo pensamento é hoje, e em alguns pontos centrais, rigorosamente executado na Rússia: «quem controla uma cultura, controla o seu povo», portanto, de Gramsci a Benoist com passagem por Dugin e executado por Putin.
De uma forma distinta, mais culta e elaborada do que a de Camus, Benoist vai ao encontro dos críticos do eurocentrismo e da ocidentalização homogeneizantes, e num fio cronológico de vertente religiosa, política e económico-social, respectivamente com as cruzadas, o colonialismo, o liberalismo e os direitos humanos, aponta o imperialismo como factor contra a diversidade e preconiza o isolamento territorial das pessoas e culturas para a sua preservação, já que o inimigo não é o outro, não é a alteridade, mas a destruição da alteridade, das identidades. O inimigo é o globalismo e o que dele decorre. Assim, franceses em França, argelinos na Argélia, marroquinos em Marrocos.
No momento em que estes argumentos deixam de ser culturais e civilizacionais, é a voz de Carl Schmitt que ouvimos e o resto, já sabemos, é história. A história do nazismo. E é com uma variante dessa mesma história que este texto se iniciou: a teoria de A Grande Substituição, com entendimento mais ou menos conspiratório, está em circulação. Num país com as especificidades dos Estados Unidos, desde a facilidade do acesso às armas à força dos movimentos supremacistas brancos e ultra-nacionalistas, reforçados por Steve Bannon e Donald Trump, pelo incansável Tucker Carlson, na Fox News, e pela recomposição política do Partido Republicano, não é surpreendente que sucessivos ataques racistas, de 2018 em diante, tenham reclamado A Grande Substituição como causa.
A substituição, de facto, não tem mistério algum: é a síntese de valores da extrema-esquerda e da extrema-direita, ultra-nacionalistas, anti-liberais e anti-democratas ocuparem já hoje o espaço daquele que foi o centro-direita moderado.
A autora escreve segundo a antiga ortografia