Não é John Adams nem Thomas Jefferson quem quer. Um e outro foram presidentes dos Estados Unidos – amigos a um tempo, depois rivais, e no fim reconciliados – com uma ideia de governança mais e menos centralizada, respectivamente. Porém, e antes de qualquer coisa, foram ambos ideólogos e fundadores de uma nação, e fazem parte, não apenas da história mas da mitologia política.

Os ideólogos definem, hoje como antes, e da forma mais simples possível, um sistema de princípios onde se estrutura a ordem social com tanto de teórico como de prático. Por isso, agora se fala de Aleksandr Dugin, segundo muitos, o ideólogo de Putin, o novo Rasputin deste folclore negro. E ainda que saibamos todos que em cada idade do mundo, foi julgada como idade de ouro aquela dos tempos mais recuados e nunca o presente, é impossível não nos abismarmos diante da perigosidade paupérrima de Dugin e da sua pseudo-história filosófica e geopolítica, uma amálgama do pensamento de, pelo menos, Evola, Guénon, Herder, Haushofer, alimentada mais tarde, já nos anos 80 e princípios de 90, com o convívio com Alain de Benoist e Aleksandr Prokhanov.

Dugin terá emergido, no fim dos anos 90, com uma nova versão de si mesmo onde o misticismo, o paganismo e o fascismo gritantes da sua juventude aparecem contidos pela geopolítica. Uma diluição homeopática de si mesmo, menos ocultista e conspiratória, mas igualmente expansionista. Menos interessada em aventuras esotéricas de Rosacruzes ou do Terceiro Reich. Publica, então, em 1997, Foundations of Geopolitics: the Geopolitical Future of Russia, e torna-se conselheiro de geopolítica de Seleznev, e assim, de facto, este tratado de Dugin entra nos curricula transversalmente. Fazem-se congressos. Contactos políticos ao mais alto nível. Conferências. Criam-se centros de estudo e formação. Há uma aproximação ao centro do poder: administração, serviços secretos, Duma. Nada do Euroasinismo defendido no seu tratado é estranho para os militares, as polícias, para os políticos russos: são quase trinta anos de estudo desta proposta de Nova Rússia, de Nova Ordem Internacional.

Foundations of Geopolitics: the Geopolitical Future of Russia não tem edição inglesa independente, mas Nina Kouprianova, a ex-mulher do líder que cunhou o termo alt-right [The Alternative Right] para a direita ultra-nacionalista e branca norte-americana, e admirador confesso de Putin, Richard Spencer, traduziu alguns textos de Dugin que estão disponíveis no website. Dugin foi entrevistado no 60 Minutes. Há vídeos seus disponíveis no Youtube. E John B. Dunlop [Hoover Institution] estudou-o e publicou esse estudo. A tese bipolariza o globo, numa fase inicial que é preciso superar. A saber – e com liberalidade e brevidade: há telurocracias, os países da terra, do sangue do povo, da tradição e há talassocracias, os países do mar, do individualismo, do racionalismo. A Rússia é uma telurocracia; os Estados Unidos, a Europa, o Reino Unido são talassocracias. É um choque de valores: Euroasianismo versus Atlanticismo. Com a queda da União Soviética, os valores do Atlanticismo permearam a sociedade russa degradando-a através da ocidentalização, do capitalismo e mesmo das aspirações democráticas. A democracia é um regime que promove o caos. A sociedade deve ser conduzida por um líder autoritário e carismático, não democrático, que encarne os valores da nação, com a qual tem uma união mística. Os valores são claros e inequívocos: primeiro a igreja, depois a nação, depois o indivíduo. E a máxima que os condensa é: «a nação é tudo, o indivíduo é nada». A nação russa, a Nova Rússia, não se define nem cabe nas suas actuais fronteiras. Define-se pela cultura, pela religião, pela vocação civilizadora consubstanciada no império. Com a fragmentação da União Soviética surgiram nações artificiais, como, por exemplo, a Bielorússia, a Sérvia (ou «Rússia do Sul»), entre outras, e o caso da Ucrânia, que tem um papel relevante, pois sem ela não será possível a concretização do projecto imperial Eurásia-Rússia. A Ucrânia foi tomada pelos valores atlanticistas mas não existe fora da matriz russa. A Rússia concretizará a sua vocação civilizadora e messiânica, o império Eurásia-Rússia com «Eixos de Colaboração» política e económica, onde as fronteiras serão reconfiguradas. Eixo Moscovo-Berlim; Eixo Moscovo-Tóquio; Eixo Moscovo-Teerão. Para além dos eixos de cooperação, a Rússia propriamente dita deve sofrer um processo de transfiguração para se tornar o que nasceu para ser: terra-pátria, povo e igreja Ortodoxa devem ser um só corpo e um só sentimento de glória passada e glória futura em movimento no presente. A política externa deve concentrar-se num «inimigo comum» que será destruído: os Estados Unidos, a democracia, o liberalismo. Os antiamericanos devem ser instigados no antiamericanismo, e ser levados a libertar a sua fúria, principalmente os fundamentalistas islâmicos. A restante acção tem características mais insidiosas e exequíveis: ocorre dentro das fronteiras norte-americanas. Deve promover «todas as formas possíveis de instabilidade e separatismo»; o racismo dos movimentos anti-racistas, mesmo nas forças policiais; as divisões raciais, sociais, culturais, de costumes; apoiar todos os movimentos extremistas e dissidentes de forma a impossibilitar os próprios processos políticos internos. Os Estados Unidos serão também constituídos como bode expiatório. No início deste movimento a Rússia deve oferecer apoio, recursos e compensações económicas aos seus aliados. De igual forma na Europa, e estimulando a sua dependência energética.

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Se a mundivisão neofascista exposta por Dugin não se tivesse tornado canónica para militares e elites políticas recuperando a ideia de Eurasianismo, variante fascista do imperialismo pós-soviético, versus Atlanticismo, pró-americano, liberal e democrático, Tradição versus Liberalismo; se a Rússia não tivesse invadido a Geórgia, anexado a Crimeia; se a «guerra híbrida» de destruição das democracias liberais a partir das suas divisões internas não se tivesse já concretizado nos EU; se a União da Juventude Euroasiática não fosse uma realidade; se o seu pensamento não fosse estudado pelos grupos ultranacionalistas norte-americanos; se não tivesse pedido uma «cruzada contra o mal» onde está justificado o desaparecimento dos territórios, e por territórios entenda-se países onde o «mal» reina e o «mal reina nos «Estados Unidos e no Ocidente»; se os movimentos nacionalistas não estivessem em crescimento na Europa; se a Rússia não tivesse invadido a Ucrânia, afirmado que a Ucrânia faz parte da Nova Rússia ou estará perdida para nazis globalistas; e tanto mais que já nem tem aqui lugar, a sua perigosidade seria delirante, seria uma resposta grandiloquente à queda da União Soviética. Assim, é trágica e tem de ser considerada para que se percebam as claras motivações Putin.

Não deixa de haver uma tristíssima ironia: John Adams e Thomas Jefferson, dois homens de cultura, ideólogos, políticos, que viveram pela concretização de um ideal de nação, de liberdade, nunca falaram nem sugeriram qualquer forma de união mística com os Estados Unidos, mas morreram ambos no mesmo dia, 4 de Julho, no cinquentenário da Declaração da Independência.

Se houve algum tempo para nós, os que nascemos depois da Segunda Grande Guerra, nos unirmos para defender a nossa liberdade e sua imperfeita democracia, esse tempo é hoje.

A autora escreve segundo a antiga ortografia