Cada um passa por fases mais contemplativas ou menos contemplativas. Há, é claro, pessoas mais dadas à contemplação do que outras e o género de actividade contemplativa varia de indivíduo para indivíduo. No que me toca, atravesso uma fase contemplativa aguda, algo para o qual tenho, de resto, declarada propensão, e a minha actividade resume-se, nestas situações, a ouvir música. Se me deixassem, ouvia música de manhã à noite, praticamente sem intervalos. Como a atenção necessária para ouvir música não dura sempre, e sem ela o sentido da música desvanece-se, às vezes a perseguição das belas formas sonoras esmorece e é preciso pensar. Mas pode-se pensar na música, e é o que me tem acontecido. Sobretudo em duas questões: porque é que reagimos emocionalmente à música – e o que é que a música tem que nos permite descobrir nela emoções. São duas questões aparentadas, mas distintas.

Há várias teorias para cada questão. No que repeita à primeira delas, encontramos, por exemplo, a hipótese segundo a qual a música desperta em nós emoções – alegria, tristeza, melancolia, medo, etc. – através de um processo de associações: ela funcionaria como um veículo de associações, remetendo-nos para tempos e lugares em que as emoções foram experimentadas. A tese, embora contenha sem dúvida elementos de verdade, não parece ser particularmente útil no que diz respeito à elucidação da relação da música com as emoções, além de se aplicar mais eficazmente à música popular, vulgo pop, do que à música chamada erudita. A associação não elucida verdadeiramente o prazer musical. O prazer e o desprazer referem-se aqui imediatamente à música, é verdade, mas o seu verdadeiro objecto é indirecto: o lugar, a ocasião, a pessoa, a que a música se encontra associada.

A segunda hipótese é a de que a música é  insusceptível de criar, de activar, em nós emoções do tipo das acima mencionadas: alegria, tristeza, etc. Não há, na música, nada que possa servir de objecto de conhecimento para essas emoções: não há na música tristeza nem alegria. Em contrapartida, há certas emoções que a música desperta, ou activa, e que a têm por único objecto de conhecimento. São emoções puramente estéticas, relativas à beleza ou à boa feitura da música, ou à sua eficácia na solução de um problema musical (ou, alternativamente, à sua fealdade ou à sua má feitura, ou à sua ineficácia na solução de um problema musical).

Há uma terceira hipótese, segundo a qual a música suscita em nós emoções em virtude da sua estrutura, através da geração de expectativas e das modalidades de satisfação que a estrutura permite. Deste modo, a música cria em nós uma série de emoções: surpresa, satisfação, espanto, alívio, desconforto… Em vários aspectos, esta hipótese assemelha-se à segunda, embora insista mais numa dimensão quase biológica da nossa reacção emocional e na nossa tendência natural para pormos fim às tensões com um estado de satisfação e de repouso.

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É a vez de uma quarta hipótese. A música activaria em nós emoções na medida em que exibiria semelhanças com certas sonoridades, que associamos, mais ou menos universalmente, a expressões vocais das emoções. O cérebro responderia a certas características sonoras em função de uma correspondência destas a sonoridades que nele imediatamente, sem avaliação, sugerem certas emoções. Nesta hipótese, como em todas as outras, nada obriga a música em si s conter emoções (alegria, medo, etc.). Pode ser que se trate de uma simples actividade projectiva nossa, à qual a música em si seja parcial ou completamente indiferente.

Passemos agora à questão das propriedades que a música deve ter para nós podermos projectar nela emoções: será que ela própria exprime emoções? Será que a música, em si mesma, é expressiva?

Segundo uma hipótese, defendida sob modos diferentes por alguns autores, a música conteria em si um conteúdo imaginário, que não seria o resultado de uma mera projecção por parte do sujeito mas seria intrínseco à própria música, que nos permitiria experimentá-la, através da imaginação, como exprimindo, externalizando, determinadas emoções. Haveria uma personagem, uma persona, que habitaria a própria música, e a sua expressão conduzir-nos-ia, por via da introspecção, a identificar em nós mesmos tais emoções.

Uma segunda hipótese associa a expressividade da música à semelhança que a música por vezes apresentaria com certo tipo de aparência de emoções. (Omito os detalhes desta “aparência”.) Estaríamos no domínio da aparência das emoções, mas a percepção das aparências enquanto ouvimos música bastaria para assegurar expressividade emotiva a esta.

Uma terceira hipótese é a chamada teoria da activação. A expressão seria um sentimento activado no auditor atento pela peça musical. Esta, para ser expressiva, deve conter elementos susceptíveis de suscitar esse sentimento. Esses elementos activam estados mentais semelhantes ao de certos sentimentos que constituem os elementos das emoções.

Quarta e última hipótese. A expressividade musical residiria na capacidade da música de apresentar propriedades auditivas que contenham elementos semelhantes aos das nossas emoções, requerendo assim, para que a compreensão da peça musical seja obtida, que essas emoções sejam suscitadas, de forma consciente ou inconsciente.

Face às teorias desenvolvidas para responder às duas questões, o que pensar? O que me parece mais plausível é que o processo da expressão musical deve supor alguma actividade do espírito. Tal actividade é condição do prazer musical. Para existir prazer musical requer-se algo como uma actividade de compreensão das formas, o que implica uma perseguição atenta destas. O exacto contrário, pois, de uma expressão imediata, passiva, das formas musicais pelo espírito. A haver semelhança entre as disposições emotivas do sujeito e as formas musicais, ela só pode ser o resultado de um processo através do qual o espírito captura imaginativamente as formas. Só assim é possível descobrir emoções na música. Só seguindo, através da imaginação, o movimento das formas musicais e procurando adivinhar a sua direcção temos prazer, compreensão e emoção.

A música oferece uma superfície sobre a qual projectamos as nossas emoções, algo como uma forma pura que espera ser preenchida. Mas essa superfície tem de possuir determinadas características – em última análise ontológicas — de expressividade que tornam a projecção possível. De outro modo, ela não provocaria qualquer efeito, não encontraríamos na música as nossas emoções. A experiência de entrar nessa superfície permite-nos capturar as emoções no seu estado puro, em isolamento do mundo real. Esse entrar projectivo na superfície expressiva das formas musicais não é possível, permito-me repeti-lo, por meio de uma atitude passiva: ele supõe uma actividade nossa, fortificada pela atenção, que é uma actividade de compreensão da forma musical, e, num certo sentido, a identificação da singularidade desta.

Mas tudo isto é, é claro, muito abstracto. É preciso torná-lo mais concreto. E só há, felizmente, uma maneira de o conseguir. É ouvir mais música.