No final da sua audição em 21-Jul no parlamento, a ministra Helena Carreiras anunciou uma reforma dos serviços do Ministério da Defesa Nacional (MDN), para desfazer a fusão de duas direções-gerais concretizada em 2011. Disse: “acredito que a fusão realizada no passado […] representou uma enorme sobrecarga para os recursos humanos, concentrou em poucos os poderes de direção, e criou riscos que importa mitigar”. E disse: “espero poder contribuir para restabelecer a serenidade e a normalidade no meio do ruído e da vertigem dos acontecimentos”. Fez este anúncio numa audição sobre o ex-Secretário de Estado da Defesa, e sobre riscos de corrupção e problemas de transparência no MDN.

Destaco duas questões substantivas e importantes a escrutinar: o anúncio da reforma; e a justificação invocada. A corrupção e a transparência são temas substantivos e muito importantes; mas, sem conhecer os factos, não opino sobre os processos judiciais em curso, nem sobre os envolvidos (alguns dos quais conheço há mais de uma década, e pelos quais tenho consideração pessoal).

Primeiro, o anúncio. A ministra disse que vai desfazer uma fusão de direções-gerais, mas nada disse sobre o resultado a alcançar. Não referiu o prazo, nem o balanço de recursos da mudança, nem como a vai avaliar. Sabe a pouco, muito poucochinho.

Depois, a justificação. Não há no anúncio da ministra uma gota de avaliação objetiva, que fundamente ou sequer explique o anúncio. A ministra não ofereceu estudos, relatórios de inspeção, auditorias, enfim, documentos analíticos, independentes e profundos, que sustentem o seu anúncio; nem sequer emitiu um “policy paper”. Claro que a ministra tem uma avaliação implícita, quando disse acreditar naquelas três coisas – tão vagas que podem servir para tudo e o seu contrário. Vejamos cada uma delas.

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Disse que “representou uma enorme sobrecarga para os recursos humanos”, mas não diz como apurou essa conclusão, nem explicou para quais, nem o que é “enorme”. Será que crescem as vagas por preencher na Direção-Geral de Recursos da Defesa Nacional (DGRDN) como, por exemplo, na Armada desde 2021? Tratando-se de uma ideia que contraria o fim que se visa usualmente com as fusões era essencial explicar aos cidadãos aquela afirmação. Sabe a pouco, muito poucochinho. E sofre de falta de transparência.

Disse depois que “concentrou em poucos os poderes de direção”. Não explicou por que isso obriga a mudar. Não o disse, mas, pelo contexto, concluo que se trata de uma pessoa em concreto. Mas só havia um/a ministro/a, e continuará a haver só um/a, que continua a ter poder de direção sobre todos os serviços da administração direta do Estado inseridos no MDN, como a DGRDN. Por que razão um diretor-geral, que tem todas as atribuições e competências especificadas na lei, tem poder de direção a mais, e um/a ministro/a que tem poder de direção sobre esse diretor-geral e vários outros dirigentes administrativos no mesmo ministério, e menos vinculação legal, não tem “poderes de direção” a mais? E é só neste ministério? E por que ignorou a falta de controlo pelos ministros? A metodologia é deficiente e há inconsistência na argumentação.

E, por fim, disse que “criou riscos que importa mitigar”; mas não disse quais são, nem como ou porquê a fusão os criou; ou melhor, não disse como a fusão criou riscos que não existiriam sem ela, nem como concluiu que desfazer a fusão é a necessária mudança. Ou, em vez desta, por que não mais e melhor controlo pelos membros do Governo? São os responsáveis pelo que se passa no seu ministério e que parecem tantas vezes meros correios dos seus subordinados administrativos. Estará a ministra a “dizer” ao primeiro-ministro que o MDN deve ser dividido em vários ministérios? Dava mais cargos aos apoiantes do PS. Mas sabe a muito poucochinho, e baseia-se em fraca argumentação.

Disse ainda visar “restabelecer a serenidade e a normalidade no meio do ruído e da vertigem dos acontecimentos”. Serão estes problemas circunstanciais os objetivos que deve visar uma reforma institucional do MDN, ou de qualquer ministério? A reforma pode resolver a crise circunstancial e a falta de controlo, e de responsabilização, pelos membros do Governo? A curtíssima explicação sabe a pouco, muito poucochinho.

Mais: quando sucessivos membros do Governo têm condescendido e alinhado com a narrativa das poupanças propagandeada pelos dirigentes da Armada, alegando economias de escala e sinergias por via da reunião de várias funções sob o mesmo chefe – a unidade de comando, como diziam desde 1992 até que tiveram de civilinizar o discurso – dividir a DGRDN destrói o “duplo uso”. A diversidade de modelos num ministério pode ter boas razões; mas a ministra deve explicar aos cidadãos por que razão aceita economias de escala num caso e recusa-as no outro – e não o fez de todo. Sabe a pouco, muito poucochinho, e são gritantes as falhas metodológicas e a inconsistência na argumentação.

A ministra é uma académica muito admirada. Dirigiu a Escola de Sociologia e Políticas Públicas do ISCTE-IUL, onde estudei e onde me avaliou várias vezes. Mas não aplicou o modelo estruturante das políticas públicas, segundo o qual a avaliação objetiva é um passo essencial para fundamentar uma reforma. Há que identificar os factos relevantes, depois identificar as alternativas (pelo menos, algumas!), e avaliar os benefícios e os custos de cada alternativa numa perspetiva global; escolher uma alternativa, e concretizá-la, explicando e mostrando tudo aos cidadãos. De novo, falharam a metodologia e a transparência, tópicos fortes no seu discurso político.

Não é novidade: a ministra, vinculada por lei a divulgar informação, e várias vezes instada a divulgá-la, também não cumpre, entre outros pontos, o dever de transparência sobre a organização interna do Sistema Nacional de Busca e Salvamento Marítimo, que está na sua dependência direta, ou a informação sobre os recursos da Autoridade Marítima.

Dito isto, a explicação mais tentadora – a incompetência técnica e política da ministra – não me parece convincente nem satisfatória. Com falta de informação, resta especular sobre como foi tomada a decisão anunciada.

Creio que a ministra foi levada a fazer este anúncio pela “máquina de propaganda” do seu partido: era necessária uma “contraofensiva”; com pressa, e pessoal pouco conhecedor e imaginativo, a “máquina” recorreu à ideia simplista e que acha que tem dado ao PS bons resultados mediáticos: “a culpa é do Passos”. Com uma cajadada matam dois coelhos: dão aos apoiantes do PS uma narrativa para se animarem e usarem, e mais cargos; e tentam pôr fim à má imprensa sobre o MDN, que também é sobre o PS. A sugestão é subtil, pois a ministra só disse “a fusão realizada no passado entre duas grandes direções-gerais”; mas os jornalistas percebem a pista – e se não percebem, há assessores de imprensa para os levar a perceber.

Dado o ambiente social e político dominante por cá, que privilegia a superficialidade no discurso e na avaliação, este anúncio pode mudar a agenda mediática e reduzir o desgaste do PS. Mas fá-lo à custa da ministra Helena Carreiras, que revela a sua falta de poder, e a falta de controlo da sua agenda e de resultados. Nada agrada mais a quem se move e manipula nos bastidores, e nada causa mais desgaste às instituições da Defesa.