O Expresso publicou há dias um longuíssimo artigo de Ascenso Simões, muito crítico sobre as Forças Armadas (FA) e o Ministério da Defesa Nacional (MDN). O artigo parece um programa para um ministro da Defesa. Dada a experiência política e de escrita do autor, não será sem querer.

Numa entrevista à Rádio Observador em março, Ascenso Simões defendeu que deviam deixar o Governo a ministra Helena Carreiras e o ministro Cravinho (que terá sido decisivo na escolha da sua sucessora no MDN). É legítimo concluir que Ascenso Simões está a posicionar-se para substituir Helena Carreiras já. Nessa entrevista, também disse: “o meu tempo de política ativa terminou”. Claro que ter “ministro” no CV é melhor do que ter “secretário de Estado”, e ninguém se surpreende ao ver políticos a desdizerem-se.

Não sei se Ascenso Simões consegue vir a ser o próximo MDN. Mas, pelo programa que ofereceu, com contradições e ideias vagas (não podia faltar a palavra “sinergias”…) e sem fundamento, não merece. Explico porquê.

Ascenso Simões fez algumas propostas acertadas (ninguém falha em tudo). Tem razão ao exigir menos secretismo, sobretudo quanto a recursos financeiros. Tem razão ao querer que “Todos os serviços que não são essenciais à operação, ao core de cada ramo devem passar para as estruturas centrais de Defesa”. Mas isto é apenas bom senso, que qualquer cidadão pode e deve defender; não capacita, por si só, alguém a ser ministro.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Primeiro, Ascenso Simões mostra desconhecer a revisão constitucional de 1982, que reduziu a missão dos exércitos à defesa militar contra ameaças externas; de 1976 a 1982, os exércitos e os militares podiam intervir internamente, como defende. O problema que Ascenso Simões acha existir vem de 1982 e não de 1976. Não é só Ascenso Simões que mal conhece a Constituição (CRP): não me recordo de ouvir ou ler algum chefe militar português a referir a CRP; e menos ainda o juramento para “guardar e fazer guardar a Constituição e as leis da República”, realçado há dias pelo General Mark Milley como seu dever supremo, ao entregar o cargo de CEMGFA, nos EUA.

Segundo, Ascenso Simões mostra que vê televisão, mas ignora as constituições e as leis da “maior parte dos países da Europa” (expressão dele que nada diz). Se soubesse do que fala, saberia que nos Estados de Direito Democráticos europeus, há uma clara separação entre Segurança Interna e Defesa, às vezes nas próprias constituições, e sempre na lei e na prática política. Os exércitos apoiam as polícias, nos termos da lei e em tarefas bem balizadas; os exércitos não mandam nas polícias, nem as substituem. A CRP (nº6 do art.275º) prevê esse apoio, densificado no Protocolo entre o Secretário-Geral do Sistema de Segurança Interna e o CEMGFA, homologado em 2020 pelo Governo. Já havia este apoio antes deste Protocolo; só não tem a visibilidade que as televisões mostram noutros países, porque não houve cá ataques terroristas ou ameaças à segurança interna que o justificassem.

Terceiro, Ascenso Simões afirma que não faltam recursos nas FA; diz é que são mal geridos. Para ser credível, tal tese tem de ser sustentada com números e comparações com referências consensuais – que não constam. Só há afirmações bombásticas e vagas. Como esta: “vida opulenta que a Armada também comporta”, apontando o problema ao “uso de recursos do Estado em restaurantes e em messes” por “oficiais superiores”. Mesmo que provasse o que diz, está errado e é injusto resumir a Armada a um grupo de oficiais (os que conhece…).

Quarto, Ascenso Simões também fala de “absentismo e do alcoolismo que são pragas com pouca atenção por parte das chefias” do Exército. É uma afirmação leviana, que insinua de novo uma generalização errada e injusta. Aliás, com esta acusação e a do parágrafo anterior, Ascenso Simões mostrou as melhores razões pelas quais não pode ser MDN: avalia mal as situações e as pessoas, e já estigmatizou e humilhou muitos dos que seriam seus subordinados e sem os quais é impossível ter êxito no programa que defende. Quem sabe de gestão, não comete erros destes.

Quinto, Ascenso Simões repete o chavão do “duplo uso” e acrescenta “e triplo uso, deve ser [ter?] também o seu pessoal, na sua formação e na sua operação, que deve garantir uma participação relevante na Segurança Pública, na Proteção Civil e na Emergência Médica”. Para quem referiu antes que, para bem gerir o MDN, é necessário “conhecimento das máquinas administrativas, dos sistemas de gestão públicos, …”, contradiz-se.

A transferência para os serviços centrais do MDN dos que não são essenciais à operação e não estão no núcleo de cada exército é uma ideia acertada. Mas contraria e inviabiliza a sua doutrina: se são de múltiplos usos, para quê transferir serviços que estão fora da missão? Uma contradição que revela a superficialidade do autor.

A ideia de pôr os militares e os equipamentos militares a fazer de tudo conduz a ineficácia e ineficiência; qualquer pessoa formada em gestão deve saber isso. A divisão do trabalho foi concebida e adotada há séculos para aumentar a eficiência na afetação de recursos. A divisão do trabalho conduziu à especialização, que envolve a formação, o treino e a experiência numa atividade. A especialização permite alcançar os mais altos níveis de eficácia. Quem faz de tudo um pouco, não consegue saber muito, nem ter grande experiência em cada atividade, sobretudo em atividades sofisticadas e com alta vertente tecnológica.

Acresce que os recursos empenhados numa atividade, não o são noutra; só faz sentido falar em múltiplo uso em atividades iguais ou muito semelhantes, em que o empenho numa não retira empenho na outra. A quem ocorre defender que os médicos passem a ter duplo uso num hospital, dispensando os enfermeiros para o Estado poupar? Mesmo que os médicos, ou os enfermeiros, tenham tempos livres, devem dedicá-los a estudar e a atualizar-se nas suas profissões (um dever profissional) e não a exercer as funções de outros profissionais – exceto numa emergência. Por os militares das FA operarem no setor da segurança não significa que saibam atuar na segurança pública, na proteção civil ou na emergência médica. Porque o militar visa a neutralização do inimigo, podendo recorrer a todo o espetro do uso da força; e este fim é fortemente marcado na sua formação e no seu treino, altamente especializados. Esta função é necessária, e é única e inconfundível nas democracias (desde meados do século XIX). Está estruturada hierarquicamente, em todos os países; dar ordens e obedecer é normal e correto; a obediência não é cega, mas não está obsoleta em nenhum serviço público.

Mais: o tempo que qualquer profissional dedique a outra atividade ou função, em vez de dedicar ao estudo, ao treino e ao desenvolvimento na sua profissão, implica perdas na sua qualificação e na sua prontidão; há que gastar recursos para voltar a alcançar os padrões adequados. De resto, entre os funcionários públicos, os militares têm a formação e treino mais onerosos, para a sua função e naquilo em que são insubstituíveis (as operações militares); as perdas de qualificação e de prontidão são muito caras de repor.

É ainda ineficiente gastar recursos a formar e treinar militares e depois fazer deles polícias ou bombeiros. Com esses recursos formam-se mais polícias e bombeiros, os especialistas nas suas atividades, ao contrário dos militares. Disparate mesmo é a ideia de serem os militares a fazer planos de formação com vista à certificação de bombeiros e agentes de segurança: de novo, não são especialistas dessas funções, não alcançariam os mais altos padrões, e estariam a perder qualificação e prontidão onde são insubstituíveis.

Sexto, Ascenso Simões defende que se deve “libertar o Instituto de Socorros a Náufragos para a Autoridade de Proteção Civil e a Polícia Marítima para a GNR”. Tem razão. Mas linhas antes defende o duplo uso, cuja doutrina (criada pela Armada) proclama que esses serviços pertencem à Armada, dirigidas por oficiais da Armada. Caso isto não demonstre a superficialidade do autor, a ideia de “estruturar melhor as capitanias” tira as dúvidas.

Ascenso Simões (PS) e Ana Miguel Santos (PSD), também coordenadora de deputados há tempos, falam publicamente sobre questões de segurança, defesa e militares. Apesar de pertencerem aos grandes partidos do regime, que organizaram o MDN, ambos dizem que é mal gerido. Mas contradizem-se; cingem-se a chavões e simplismos, para obter espaço e ecos mediático e nas redes sociais; no que dizem não se vislumbram ideias estruturadas e multidimensionais; e aquilo que propõem piora a eficácia e a eficiência. É tudo superficial.

É bizarro que, quando ficou patente que os exércitos em Portugal e mais países europeus não estavam preparados para derrotar a ameaça de Putin, estes políticos não percebam o erro das narrativas das poupanças e do duplo uso. Ilustram bem a sua superficialidade, e das suas narrativas, bem-sonantes. E mostraram como tantas pessoas são aliciadas por discursos bem-sonantes, sem uma análise crítica. Que as capacidades dos exércitos estejam no máximo de prontidão e de eficiência é que é económico e boa gestão.

É lamentável alguém posicionar-se para ser MDN e nem dominar aspetos básicos sobre a CRP e as leis do país sobre a segurança e a defesa; ou contradizer-se no mesmo texto. Claro que as opiniões são livres. Mas será pedir muito a um político, que até já passou pelo Governo, mais do que uma “lista de compras”, que articule um esquema de planeamento estratégico, do qual resulte a tal “lista”?

Precisamos de “um poder político que tenha coragem”. E precisamos de “políticos fortes com leitura de gestão”. Mas precisamos que também estudem antes de falar e que fundamentem o que dizem. Não é o caso de Ascenso Simões, que mostrou poucochinho, muito poucochinho.