Winston Churchill, depois de conduzir o Reino Unido durante a II Grande Guerra, perde as eleições para o Partido Trabalhista, em Julho de 1945. Só volta a governar – e pela última vez – entre 1951 e 1955.
Na qualidade de Líder da Oposição britânica, em Março de 1946, está — a convite do Presidente Truman — no Westminster College, em Fulton, no Missouri. É neste estado americano que profere um discurso que vai estruturar a narrativa política durante décadas.
Através da leitura da situação internacional à data, defende a importância do multilateralismo como solução necessária para ultrapassar as clivagens da Guerra – e nesse sentido, o papel decisivo das Nações Unidas. Explica a importância de um fórum mundial que organize o concerto das nações e que tal não é contrário à existência de alianças regionais, lembrando, nomeadamente, a antiga aliança com Portugal, que data de 1384. Ao mesmo tempo, define o nascimento de uma nova situação geoestratégica – a divisão do Mundo em dois blocos – O Ocidental e o Soviético: “De Stettin, no Báltico, a Trieste, no Adriático, uma cortina de ferro desceu sobre o Continente”. E destaca duas grandes ameaças à vida dos cidadãos: a guerra e a tirania.
Sete décadas passaram.
O Bloco Soviético desmorona-se, com o muro de Berlim, em 1989. O Bloco Ocidental perde este antagonista, e apesar disso (ou talvez por isso) fragiliza-se ao longo dos últimos 20 anos. O unilateralismo errático de Donald Trump, as dissenções Norte/Sul dentro da União Europeia, as ingerências veladas da Rússia, a dificuldade de falar a uma voz com a China, têm, atualmente, dado um grande contributo para o seu fim.
2020: confiantes na retoma da última crise económica global, fomos, inesperadamente, empurrados para o cenário mais estranho que o Ocidente vive desde 1945.
O Ocidente, que beneficia de uma paz duradoura como não se vivia há séculos e dos proveitos da sociedade de consumo em ambiente democrático, teve, nas últimas décadas, um decréscimo significativo da participação política dos cidadãos. É nesse ambiente que os países ocidentais começaram a ver as democracias a ser atacadas por extremistas de Direita e de Esquerda, pelo fundamentalismo islâmico e por um conjunto de potências a quem interessa uma Europa fraca e dividida.
Entretanto constituímo-nos como uma sociedade de ecrãs, que as redes sociais fortaleceram e fragilizaram numa equação complexa. Os paradoxos da inflação tecnológica e da deflação da participação cidadã têm conduzido a modelos organizacionais insatisfatórios, na vida política, social, cultural e económica, numa espécie de ocaso de uma época, que, como sempre acontece em períodos de transição, traz mais incógnitas que respostas.
É neste contexto, que, agora – como resultado da pandemia que vivemos – somos colocados perante o que pode ser um desafio garacional decisivo, nas nossas vidas pessoais e sociais.
Estamos forçados a mudar. Ou estamos só à espera de voltar à falsa ideia de uma segurança perdida?
Em plena tempestade, vivemos o que se convencionou chamar “emergência”.
Estado de emergência. A democracia, decidiu suspender direitos da sociedade democrática. Direito de reunião, de circulação. Confinamento, suspensão do direito à greve, de celebrações religiosas, limitação de presenças nos funerais…
Os governos nacionais vivem uma bonança na dinâmica do processo político. Em nome do interesse nacional, as posições têm dificuldade de exercer o seu papel no quadro do jogo democrático.
Com a centralidade mediática do Covid-19, a atividade comunicacional é circular – começa com notícias da pandemia e acaba com notícias da pandemia. A saturação é evidente, para todos os agentes do sistema – políticos, administração pública, empresas, sociedade civil, cidadãos em geral. O empobrecimento, o desemprego, as falências, o layoff, atingem parte muito significativa da população. Entretanto, algumas indústrias, como sempre acontece em ambiente de guerra ou de grave crise, enriquecem à custa da desgraça alheia.
Este ano, 74 anos depois do discurso de Churchill em Fulton, no Missouri, uma nova cortina abateu-se sobre o Continente.
Já não suportada pelo ferro das botas cardadas e das armas, delimitando dois blocos político-militares, mas pelo mutismo auto-imposto que promove o ocaso do pluralismo, na forma de redução do debate político, da economia de mercado, das interações pessoais e sociais.
Vivemos uma forma específica de silêncio (ou de silenciamento), entre o pânico sanitário e a suspensão de direitos. Eis a nova cortina, mais insidiosa e intransponível, porque decorre de limitações heteroimpostas articuladas com limitações autoimpostas. As vontades conjugam-se.
Há um novo contrato social, fundado numa cerca sanitária. E este contrato, limitador das liberdades e dos direitos, sob a forma de norma transitória, afeiçoa os espíritos ao exercício do controlo, dá um novo sentido à palavra “autoridade”. Agradecemos que a polícia nos mande parar, que não nos impeçam de circular, compreendemos que não nos deixem despedir de quem nos importa. Não há revolta – há consentimento. A ideia mobilizadora deste consentimento é a obtenção de um bem considerado maior – a saúde.
De um momento para o outro, todas as “conquistas” ocidentais das últimas décadas, numa sociedade caracterizada pelo hiperconsumo – que tenderam à abolição do conceito de sacrifício, à relativização das ordens de valores e à celebração do império do deleite – foram postas em causa.
Voltamos a perceber, enquanto comunidade e enquanto indivíduos, a importância da renúncia, o valor sacrificial, a necessidade de priorizar certos bens morais em relação a outros. Todavia, a nova ordem de valores, conjuga de uma forma excêntrica o voluntarismo do sacrifício com a imposição da autoridade: queremos o sacrifício que nos é imposto. Quando uma sociedade inteira se organiza nesta querença, há um reforço dos poderes dominantes sobre a cidadania. Temos de mudar de querer.
Depois do tempo da cortina de ferro, vivemos hoje na Europa, não mais divididos entre Bloco Ocidental e de Leste, mas cobertos todos, por uma cortina de veludo, um manto aparentemente confortável, construído sobre o dispositivo tecnológico que ao longo das últimas décadas gerou uma sociedade mundial, ligada a vários níveis, numa nova ordem.
Servida por uma fonte energética centenária – a eletricidade – a nova cortina utiliza a panóplia tecnológica atual e constitui-se, paulatinamente, como novo Panopticon, esse modelo de controlo centralizado das sociedades, concebido por Jeremy Bentham.
Somos prisioneiros da liberdade de comunicação em rede, cada vez mais controlada, cada vez mais um olho que tudo vê.
Antes, houve ficções sobre a reificação do poder através da tecnologia. Agora, o processo de controlo através da tecnologia – que já estava em curso – teve um estímulo de aceleração.
Rendemo-nos sem luta, a todas as horas do dia, às cookies associadas a cada passo que damos no mundo digital, com um clique a dizer “aceito”. Aceitamos a ingerência, o escrutínio nas nossas vidas de milhares de organizações invisíveis – públicas e privadas – que trabalham com o mesmo propósito na análise de dados e metadados: a padronização de comportamentos, a aferição das atitudes individuais, de grupo e de grandes agregados.
Qual o seu objetivo? Poder e lucro. Com o nosso consentimento, tomam-se decisões que modelam as nossas formas de pensar e de sentir, ou de outras que nos incluem ou excluem social, económica e politicamente, sem mesmo termos a consciência disso.
“Aceito”. Aceito entregar a informação sobre o que penso e o que sinto, sobre quem são os meus amigos e as minhas preferências, sobre o que faço de manhã e à noite, sobre onde estou e para onde vou, sobre o que gosto e o que detesto, sobre os meus ideais e vícios, sobre a minha saúde e educação, sobre as minhas convicções políticas e religiosas, sim, aceito que me desnudem e me tratem assim, como um macaco nu. Aceito ser colocado numa placa de Petri, e manipulado pelas mãos de novos senhores, armados pela tecnologia de análise e de controlo: Fintech, Adtech, Big Data&Analytics, Digital Media, AI…
O Covid-19 acelerou de forma dramática o processo de análise e controlo em curso.
O exercício a cooperação face às necessidades sanitárias sobrepõe-se hoje ao debate político, à circulação plural de informação e de conhecimento. O ecossistema político está reduzido às medidas de higienização, profilaxia, tratamento e todas as outras que lhes são correlativas, desde as dinâmicas industriais, às agrícolas, da distribuição de produtos à sua produção. Desde a organização do trabalho às situações em que este falta, da vida cultural à atividade educativa, da vida em família à relação com os amigos.
Mas este processo não é imparável. E se mudássemos o sentido da expressão “Estado de Emergência”?
Afinal a palavra é polissémica. Não significa só uma situação grave e perigosa. Significa também ato ou efeito de emergir, ou seja, subir para a clareza.
Se, “emergência”, em vez de corresponder à situação de privação de direitos, justificada pela defesa do interesse comum, correspondesse ao momento em que emergimos, em que nos clarificamos?
O “Estado de Emergência” pode ser o status de quem emerge.
E se conseguíssemos afastar a cortina de veludo que nos sufoca?
Sim, é bem mais fácil definir os amigos e os inimigos perante uma cortina de ferro, como a que cobria o Ocidente noutro tempo. Uma divisão linear entre territórios.
A cortina de veludo, esse manto que corresponde à unificação digital das diferentes geografias humanas, e nos corta a respiração de forma invisível, pode ser rompida por ações emergentes?
E se conseguíssemos colocar os valores humanos do pluralismo, da proteção da vida privada, da liberdade , acima da tendência de controlo autoritário, que de forma insidiosa, oportunista e velada nos assola?
E se o “Estado de Emergência” fôssemos nós, a libertarmo-nos do confinamento, através da construção de modelos confiáveis de comunicação e interação em rede?
Winston Churchill, no seu discurso de 1946, em que enunciou o conceito de cortina de ferro, dizia que as duas grandes ameaças aos cidadãos eram a guerra e a tirania. Nessa data, guerra e tirania associavam-se a sentidos diferentes daquilo que hoje são a guerra e a tirania que vivemos. Mas não deixam de o ser, veladamente, nesta cortina que, aveludadamente, nos envolve.
A democracia ocidental vive desafios tremendos.
Tomemos este momento singular como uma oportunidade de aprofundar o humano face ao medo, de celebrar o que nos importa para lá do círculo limitado dos ecrãs.
Não somos nem analógicos nem digitais.
Somos pessoas, e as cortinas que nos asfixiam, quanto mais doces forem, mais resolutamente devem ser rasgadas.