Soou finalmente a hora europeia de António Costa, um sonho antigo para o qual trabalhou, afincadamente, tanto ao aprofundar a sua relação estimável com Ursula von der Leyen (a quem perguntava, em junho de 2021, com patriótico enlevo – aprovado o famoso PRR –, se “já posso ir ao banco?”), como ao assistir, ao lado de Viktor Orbán, à final da Liga Europa, na Hungria, em amena e útil cavaqueira desportiva, graças a uma providencial escala do “Falcon”, da Força Aérea. Um “desvio” intencional sonegado da agenda oficial do então primeiro ministro.
Com este sonho cumprido – e apesar de, confessadamente, não ser crente –, Costa só poderá sentir-se abençoado pela “crise do parágrafo”, desencadeada, em boa hora, pela Procuradoria.
Tratou-se de um oportuno parágrafo, cuja autoria nunca foi reclamada, não obstante o aturado esforço dos media, que elegeram o episódio como o facto político do ano, atribuindo-lhe as culpas pela queda do governo.
Afinal, e, bem vistas as coisas, Costa só tem razões para estar feliz e grato ao ministério Público e à PGR, que terminará o mandato em outubro, deixando a quem vier a seguir o encargo de “por ordem na casa”, de acordo com a judiciosa opinião da actual ministra da Justiça.
Com esta escolha, e de uma penada, o “construtor de consensos“ e o “alquimista das oportunidades”, conforme o Expresso, desvanecido, passou a tratar Costa, ou “o melhor politico da sua geração”, na opinião convicta do Público , há que reconhecer que o próximo presidente do Conselho Europeu, distribuiu, pelo menos, cinco alegrias a diferentes actores..
A primeira, foi obviamente a si próprio, ao garantir um confortável estatuto político internacional durante, no mínimo, dois anos e meio, farto em mordomias e cabedais, com direito a reforma vitalícia e livre dos mexericos e dos incómodos inerentes ao governo da nação, do qual estava visivelmente saturado.
A segunda alegria, foi para Marcelo Rebelo de Sousa, que tendo desempenhado, em constante estado de prontidão, o papel de “pronto socorro”, para livrar Costa dos frequentes sarilhos e derrapagens da “geringonça”, correu a promovê-lo na corrida em Bruxelas… não fosse ter de continuar a ouvi-lo, semanalmente, na qualidade de comentador televisivo do Now.
A terceira alegria, foi para Luís Montenegro, em estado de revelação na noite das Europeias, ao trocar a derrota por “poucochinho“ pelo encantamento, enquanto assumido apoiante da candidatura de Costa, o “melhor socialista“ (dixit) para presidir ao Conselho Europeu. Nem Sanchéz diria tanto…
A quarta alegria foi para Pedro Nuno Santos, o seu rival interno e sucessor, outro beneficiário activo da “crise do parágrafo“, sem a qual teria continuado a penar como comentador da SIC, e líder da facção mais radical do PS, adepto provável da “frente popular”, para a qual está a ser insistentemente desafiado pela extrema esquerda em aflições, talvez inspirada na solução francesa.
Fica para a História a sua espantosa e ditirâmbica declaração em Bruxelas, de que Costa será “o primeiro presidente do Conselho Europeu com peso político, com experiência e inteligência, para dar a importância que este cargo merece ter”.
Os antecessores de Costa no Conselho deverão apressar-se a agradecer a Pedro Nuno tão expressiva e bondosa cotação…
Melhor do que esta tirada, só aquela que o celebrizou, ao declarar, em dezembro de 2011, que se estava “marimbando para os nossos credores” e que “se nós não pagarmos a dívida (…) as pernas dos banqueiros alemães até tremem!“. Era então vice-presidente da bancada parlamentar socialista. Não mudou muito.
E, por fim, a quinta alegria, vai direitinha para Alexandra Leitão, que depois de ser comentadora (é o novo tirocínio obrigatório para qualquer político que se preze…), ministra e líder parlamentar, tem uma aspiração de peso, já partilhada.
É que, pensando num futuro governo “gostava que essa primeira-ministra fosse do meu partido”, e tem a firme determinação de que é “uma das algumas [mulheres] dentro do partido” que reúne as melhores “condições” para vir a desempenhar o cargo.
Alexandra quer repetir, pelos vistos, o exemplo de Maria de Lurdes Pintasilgo, até hoje a única mulher na chefia de governos pós-25 de Abril. Eanes convidou-a em 1979. Durou seis meses na função. Pedro Nuno que se cuide…
Em resumo: a “crise do parágrafo“ abriu o apetite a muita gente e representou uma espécie de “caixa de Pandora“ na política à portuguesa, que não se confunde com outras em que a Europa tem sido fértil, a começar pelo “Brexit”, que ainda hoje divide os britânicos
Dizem os entendidos que as crises podem ser criativas. E, no caso português, as mais recentes não só permitiram eleições antecipadas e uma reconfiguração das bancadas parlamentares, como “libertaram” Costa para os desejados voos europeus, decerto muito mais gratificantes do que aturar as tropelias de Pedro Nuno e de João Galamba, ou corrigir as asneiras de Cabrita, com a extinção do SEF.
De entre as cinco alegrias mencionadas – sem esgotar as várias razões da felicidade reinante no Largo do Rato ou em São Bento -, avulta a de Marcelo Rebelo de Sousa, que ilustrou, assim, as suas já clássicas “travessuras”, ao fingir que “tirava o tapete” a Costa para o devolver depois com “juros de mora”…
No dia seguinte ao jubilo comum a Marcelo e a Montenegro, juntou-se, lesta, a generalidade da imprensa, rendida ao feito de um protagonista português, fadado para dar muitas “cambalhotas” na vida, mas ficar sempre de pé, até a defender que “as vacas também voam” ….
Consoante as tendências, os jornais “embandeiraram em arco”, com vantagem para o Público, ao editar uma foto do ex-primeiro ministro ao alto e à largura da capa, e o (enigmático) título “fazedor de geringonças chega ao cargo na hora H”. E o “Correio da Manhã”, que não se fez rogado, ao titular na primeira página que “António Costa promete ser o presidente de toda a Europa”. O paroquialismo no seu melhor.
A comparação é irresistível. No mesmo dia, a Imprensa alemã era bem mais discreta e parcimoniosa ao noticiar o consenso obtido na recondução de Ursula von der Leyen, à frente da Comissão. Nada comparável, portanto, à euforia da Imprensa lusitana.
Aceite-se, sem favor, que Costa, apesar de ter sido um “mau primeiro ministro” para alguns, sempre gozou de “boa imprensa”, que soube mimá-lo e afagar-lhe o ego nos momentos bons, e perdoar-lhe os deslizes, compondo e retocando a imagem do ”optimista irritante” para consumo interno e das chancelarias.
Há muito que Costa acalentava o sonho europeu. Era algo que se percebia estar-lhe “colado à pele”, sempre que participava em diferentes fóruns internacionais, nomeadamente, em Bruxelas.
Essa apetência era tão notória que Marcelo não hesitou no aviso, logo no discurso que proferiu na cerimónia de posse do governo maioritário de Costa, em março de 22, lembrando que “agora que ganhou por quatro anos e meio (….) sabe que não será politicamente fácil que a cara que venceu de forma incontestável e notável possa ser substituída por outra a meio do caminho.”
Parecia que adivinhava. Mas o mundo precisou de dar muitas voltas antes de corresponder à “profecia” presidencial.
A “crise do parágrafo” veio, pois, bem a propósito, para por um ponto final na balbúrdia reinante no governo, agravada pela incapacidade demonstrada pela ministra de Estado, Mariana Vieira da Silva, para “ter mão” nos seus pares (como se viu nos rocambolescos episódios com Pedro Nuno Santos e João Galamba) nas ausências do primeiro ministro.
Ao retirar-se da cena nacional, resolvido o “berbicacho” de ser ouvido, em prazo útil, pelo Ministério Público (enquanto Galamba se desdobra em requerimentos, que ficam em fila de espera no MP) Costa abriu espaço a Pedro Nuno Santos e deixou de ser uma sombra no seu percurso, a pairar sobre o partido.
Tudo saiu tão bem, no “timing” certo, e segundo os equilíbrios exigidos à mesa das negociações pelas principais famílias políticas representadas no Parlamento de Estrasburgo, que Costa confidenciaria que “se fosse crente, diria que era um milagre”. E “reverteu” a seu favor a mensagem presidencial quando o advertiu “para, sem desculpas ou álibis, fazer o que tem de ser feito”. E ficou a menos de meio do mandato.
Mas se as coisas correram de feição para o indigitado presidente do Conselho Europeu, o “milagre” já não aconteceu com o novo eurodeputado Cotrim de Figueiredo, que deu um passo em falso, ainda antes de sentar-se no hemiciclo de Estrasburgo.
A fé de Cotrim não durou mais do quatro horas, segundo rezam as crónicas, entre anunciar-se candidato à presidência dos liberais europeus, e dar “o dito por não dito”, recuando em toda a linha, no meio de explicações toscas e atabalhoadas. Acabou por ser eleito para uma das oito vice-presidências do grupo. Fraca consolação.
Em português chão, Cotrim “espalhou-se ao comprido”, por inépcia, excesso de confiança, ou defeituosa informação. E perdeu a “boa onda” que o acompanhou em Portugal. Uma pena.
Por cá, no primeiro debate quinzenal pós-eleições, Montenegro achou, talvez, que ainda não fora suficiente a declaração cúmplice feita na noite das Europeias e repetiu a dose no hemiciclo, com vénias às excelsas virtudes do ex-primeiro ministro, como se estivesse predestinado há muito para presidir ao Conselho Europeu.
Depois, para desespero das esquerdas radicais e do Chega, Montenegro acolheu o repto lançado por Pedro Nuno ao lembrar-lhe que “os portugueses esperam de nós a capacidade de nos entendermos em muitas matérias”, e mostrou-se a aberto a desenhar um futuro Pacto de Justiça, envolvendo o PSD e o PS, uma plataforma há muito adiada por desinteresse corporativo.
Depois, em momento desinspirado, Montenegro ainda teve tempo para assumir o compromisso de testar a semana de quatro dias na Função Pública, uma “modernice” sem respaldo, cultivada pelas esquerdas radicais e veiculada no debate por uma deputada do Livre.
Se Montenegro supõe que assim consegue conquistar votos do funcionalismo vai por mau caminho. E casa mal com a degradação que grassa na administração publica, onde se multiplicam as baixas médicas duvidosas e os pretextos para o teletrabalho, com redução de horários para o publico e marcação prévia de atendimento presencial, legados desastrosos do governo socialista.
Montenegro recordou na sua intervenção que é um parlamentar experiente. É verdade e foi um dos melhores líderes na bancada do PSD. Convirá, no entanto, que não abuse da autoconfiança, que poderá ser traiçoeira para quem está ainda em rodagem como primeiro ministro. E cujo “estado de graça” não chegou a existir.