1. Diz-se muitas vezes, cada vez mais, que as diferenças ideológicas entre os grandes partidos de esquerda e direita com expressão parlamentar se esbatem, a ponto de as suas políticas económicas e sociais se tornarem indiferenciadas e todas elas sujeitas à influência reinante do credo neoliberal e à ditadura da eficiência económica através do mercado. Pois bem, um dos muitos méritos da conferência sobre a democracia, promovida pela Fundação Francisco Manuel dos Santos e ocorrida no passado dia 7 de outubro, foi o de demonstrar que, pelo menos no seio da esquerda, as divergências teóricas permanecem bem reais e visíveis.
2. Refiro-me em particular ao debate travado entre Jean L. Cohen e Chantal Mouffe. Trata-se de personalidades bem conhecidas no mundo académico que reflete sobre a política e a democracia. Chantal Mouffe, atualmente professora de teoria política na Universidade de Westminster, em Londres, é autora de muitos livros sobre o radicalismo democrático, o populismo de esquerda e o lugar da política na vida atual, desde Hegemonia e Estratégia Socialista, escrito em coautoria com Ernesto Laclau e publicado em 1985, até obras mais recentes, entre as quais cabe destacar O Paradoxo Democrático, de 2000, Sobre o Político, de 2005, ou mais recentemente Agonística: Pensar o Mundo Politicamente, de 2013.
É certamente revelador que o seu livro A Ilusão do Consenso, publicado este ano, mas correspondente a uma tradução francesa de Sobre o Político, aparecido originariamente em inglês, surja com uma tarjeta publicitária que identifica Chantal Mouffe como «A inspiradora da nova esquerda radical». Sem dúvida que a autora repetidamente afirma o seu posicionamento político de esquerda, o que vimos confirmado na sua intervenção em Lisboa. Não se trata, na verdade, de qualquer esquerda, mas de uma esquerda que pretende «radicalizar a democracia», como afirma repetidas vezes na sua obra.
Chantal Mouffe rejeita, com efeito, o centro-esquerda concebido na linha da «terceira via» teorizada por Anthony Giddens e posta em prática por Tony Blair, que seria em grande medida responsável pela nossa atual condição apolítica, à qual melhor caberia a designação de «pós-democracia».
A «terceira via» é a visão da política que pretendia finalmente conciliar a esquerda com o capitalismo, mas acabou por alegadamente sucumbir à voragem neoliberal, que submete todos os domínios da vida social, incluindo o próprio Estado, à lógica implacável do mercado. A «pós-democracia», por seu turno, expressão cunhada pelo sociólogo e cientista política inglês Colin Crouch, corresponde àquela condição dos Estados em que existem certamente regime democráticos, cujas regras são formalmente observadas, mas em que os interesses duma minoria poderosa se sobrepõem sistematicamente aos interesses das pessoas comuns, reduzidas a um papel meramente passivo de consumidores do espetáculo político. Por outras palavras, o que está em causa é uma condição política em que as elites aprenderam a manipular as exigências populares e as pessoas são persuadidas a votar através de campanhas engenhosamente concebidas por técnicos de marketing político.
Ao mesmo tempo que rejeita esta atitude do centro-esquerda, equivalente, segundo acredita, a deixar-se cair nas garras do capitalismo, Chantal Mouffe pretende também reagir ao pensamento de esquerda presente em algumas versões do comunismo e da social-democrata. E isto pela simples razão de que tais versões não conseguiriam acomodar todos aqueles movimentos sociais que já não são baseados apenas nas exigências duma determinada classe social, mas antes procuram realizar as exigências das feministas, dos homossexuais, dos que lutam contra o racismo, ou em prol do ambiente.
Deixemos de lado, antes de mais, a questão de saber se os movimentos que visam realizar as exigências acabadas de mencionar são necessariamente de esquerda, ou da esquerda radical. O que importa agora é compreender que, para Chantal Mouffe, rejeitar a «terceira via» sem aprisionar a esquerda numa lógica classista significa recuperar a dimensão política da vida social e isso requer, segundo ela, aceitar a existência do «antagonismo» como aspeto central da vida política, isto é, a existência de conflitos para os quais não existe solução racional. Seria a consciência desta irredutibilidade do pluralismo e do conflito que permitiria escolher como objetivo da esquerda, dita radical, «criar uma vontade coletiva das forças democráticas no sentido de exigir a radicalização da democracia e estabelecer uma nova hegemonia». Importaria assim à esquerda assumir abertamente uma atitude populista de esquerda, com o objetivo de promover movimentos populares capazes de mobilizar paixões conducentes à construção duma vontade popular erigida contra as forças que sustêm a hegemonia neoliberal.
3. O problema deste modo de ver a democracia reside logo na sua auto-compreensão: não está em causa compreender a democracia em si mesma, mas repensar a democracia na perspetiva dum certo pensamento de esquerda e também, pelo menos implicitamente, sustentar que a plena realização democrática constitui um exclusivo duma posição política definida como de esquerda. Para além da incapacidade típica duma certa esquerda em escapar ao poder encantatório da figura retórica da pars pro toto quando se trata de pensar a democracia e o povo, os problemas ocorrem quando se pretende conceptualizar o conflito inerente à visão antagonística da política segundo Chantal Mouffe.
Estamos perante um conflito entre adversários, cujas ideias são combatidas, sem nunca questionar o seu direito de as defender? Ou estamos perante uma luta entre inimigos que importa subjugar? Em escritos mais recentes Chantal Mouffe tem defendido que a sua visão do conflito político não assume tanto a forma dum «antagonismo» entre inimigos, mas antes a forma dum «agonismo» entre adversários, unidos por uma fidelidade comum aos princípios democráticos da liberdade e igualdade para todos.
Se assim é, todavia, qual a diferença deste modelo agonístico da democracia em relação às democracias liberais? Na verdade, não se antevê nenhuma diferença de relevo entre a visão agonística da política e da democracia e a visão que, sem negar o conflito entre diferentes pontos de vista, procura encarar o processo democrático como a busca duma acomodação racional de soluções aceitáveis para todos os membros da comunidade, nas condições limitadas de tempo e de escassez de recursos que forçam a tomada de decisões, sem pôr em causa a possibilidade de as rever.
Não adianta muito dizer, como diz Chantal Mouffe, que aquilo a que os liberais chamam um adversário é, na realidade, um concorrente, e que, em vez dum conflito para desalojar e pôr em questão a hegemonia dominante – no momento atual, a hegemonia neoliberal –, o que os liberais apresentam é uma simples concorrência entre elites com o objetivo de ocupar as posições de poder. É verdade que este risco de reduzir a política a uma simples circulação de elites está bem presente nas democracias modernas. Ao mesmo tempo, numa democracia efetiva aquilo que desalojamos e combatemos é tão importante como aquilo que devemos manter para que os valores democráticos sejam honrados. E o que devemos manter, como a própria Chantal Mouffe não deixa de reconhecer, é uma fidelidade comum aos princípios da liberdade e igual valor de todos os cidadãos, a que não pode deixar de se juntar a capacidade e vontade por estes demonstrada de serem capazes de mutuamente apresentar e aceitar razões para as opções políticas avançadas. Neste sentido, existe em toda a democracia um momento deliberativo ineliminável.
Também não ajuda sustentar que a democracia agonística não elimina propriamente o antagonismo, que permaneceria «sublimado» na luta entre projetos hegemónicos opostos que visam a derrota do outro. É que, afinal, ficamos sem saber para que serviu exatamente a distinção entre agonismo e antagonismo.
A ambivalência do pensamento político de Chantal Mouffe é ainda demonstrada pelo seu entendimento de que a democracia e a representação política são, em última análise, irreconciliáveis, sem deixar de sustentar, ao mesmo tempo, que é possível reestabelecer a prioridade dos valores democráticos sem pôr em causa as instituições liberais representativas.
4. As objeções que aqui deixo muito resumidamente formuladas foram também suscitadas por Jean Cohen, professora de pensamento político na Universidade de Columbia, em Nova Iorque, e cuja obra inclui títulos tão relevantes como Sociedade Civil e Teoria Política, de 1997, em coautoria com Andrew Arato, ou, mais recentemente, Globalização e Soberania: Repensar a Legalidade, a Legitimidade e o Constitucionalismo, de 2012. As áreas de interesse da autora cobrem, na realidade, todos os conceitos políticos que são postos à prova nas sociedades atuais: a sociedade civil, a soberania, a democracia, a justiça global, mas também a privacidade, o género, os movimentos sociais e os direitos.
Jean Cohen questionou a utilidade de recorrer a chavões como «pós-democracia», «populismo de esquerda», «radicalismo democrático» e «democracia agonística» para compreender os problemas que se colocam às democracias de hoje. Simultaneamente rejeitou também a capacidade explicativa dos conceitos correspondentes. Sem dúvida que existem os perigos de manipulação e alienação dos cidadãos identificados por Colin Crouch, mas isso não é suficiente para caracterizar as democracias constitucionais, em bloco, como «pós-democracias»; não há dúvida que existe um elemento de conflito, ou agonismo, em toda a política, mas não é possível reduzir a política e a democracia a esse elemento; «populismo de esquerda» e «radicalismo democrático» podem ser designações úteis num projeto de mobilização política, mas de pouco servem enquanto conceitos duma teoria que nos permita avançar na compreensão dos complexos problemas suscitados pelas democracias modernas.
Ora, as democracias modernas são, na realidade, e não se perspetiva que deixem de ser, as democracias constitucionais liberais dos Estados soberanos. Não precisamos de conceitos novos para compreender as exigências colocadas pela realidade atual às democracias, mas de reimaginar os conceitos político-filosóficos e jurídicos que há muito nos acompanham, como os conceitos de soberania dos Estados, de pluralismo jurídico, de tolerância constitucional, entre muitos outros. São estes, afinal, os conceitos políticos da modernidade.
5. Jean Cohen não deixou de assumir a sua condição liberal, no contexto americano, correspondente a uma visão progressiva da política e revelando algumas afinidades com os pontos de vista do senador americano Bernie Sanders, que defende o Second Bill of Rights do Presidente Roosevelt em termos que são próximos da visão política dos partidos socialistas europeus. Nesta conformidade, o seu debate com Chantal Mouffe correspondeu, efetivamente, a um confronto entre a esquerda moderada e a esquerda radical, mostrando bem que esse confronto está longe de se poder considerar superado. Muito pelo contrário, do resultado desse confronto depende, em grande medida, o futuro político da Europa.
Sobre esta última afirmação pode certamente existir acordo, ainda que com a mesma se pretendam coisas muito diversas. Permitam-me, por isso, precisar aquilo que pretendo com tal afirmação. Coube-me o privilégio de moderar o debate entre Jean Cohen e Chantal Mouffe. Encontro no pensamento de ambas aspetos muito úteis para ajudar à compreensão do momento político atual e dos problemas que afligem os regimes democrático-constitucionais. Isso não significa, é claro, que me identifique com a visão política de qualquer uma das duas pensadoras. Mas não tenho dificuldade nenhuma em indicar qual a posição política que considero como adversária e qual tomo por inimiga. O centro-esquerda, ou esquerda moderada, é a posição política inequivocamente comprometida com o compromisso constitucional e europeísta dos Estados-Membros da União; a esquerda radical, pelo contrário, nega abertamente esse compromisso ou apresenta uma visão meramente instrumental e aparentemente tática em relação ao mesmo. Nessa medida, surge verdadeiramente como o inimigo que importa combater.
Regresso, assim, à questão que há pouco acusei Chantal Mouffe de não saber responder: a do sentido que devemos atribuir à distinção entre «agonismo» e «antagonismo», ou entre adversário e inimigo. Inimigo, segundo creio, é simplesmente todo aquele que não respeita o compromisso subjacente às regras do Estado constitucional.
Miguel Nogueira de Brito é advogado, professor na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, e assessor para assuntos constitucionais do Presidente da República.