1. A democracia constitucional moderna caracteriza-se pelo seu fundamento na dignidade da pessoa humana. No actual constitucionalismo, (ainda) faz parte do consenso universal que uma maioria, nos Parlamentos, não pode decidir tudo. O poder legislativo, como todos os poderes políticos democráticos, está sujeito à Constituição, que solenemente declara tudo assentar na base da dignidade da pessoa humana, que se desenvolve nos princípios fundamentais de Direito e nos direitos fundamentais pessoais. É neste sentido substancial, e não apenas em sentido formal ou literal, que as democracias são constitucionais; e não são democracias absolutas.
2. Os Parlamentos estão limitados pela Constituição, mas não apenas em sentido literal; estão vinculados pelos princípios e fundamentos constitucionais — o que implica levar a sério a ponderação desses princípios, e não os ludibriar com retóricas ideológicas. Note-se que «Princípios Fundamentais» é precisamente a expressão que aparece na nossa Constituição, para compendiar os enunciados que estão colocados logo no início, ainda antes da Parte Primeira. A qual, por sua vez, é titulada como «Direitos e Deveres Fundamentais». Ou seja: antes e com os direitos fundamentais, há princípios fundamentais. Até mesmo as revisões constitucionais e os referendos populares estão limitados por princípios constitucionais.
3. Por sua vez, os partidos políticos, que gozam de enormes privilégios eleitorais (aliás muito discutíveis), devem considerar-se honradamente vinculados, não só em geral pelo seu Programa, como ainda mais concretamente pelo «contrato público» programático eleitoral que propuseram aos eleitores, em especial na última eleição. A ideia de um mandato «absoluto» dos deputados parlamentares, desvinculado do seu programa partidário e do programa do último contrato público eleitoral, não respeita escrupulosamente a ideia essencial da constitucionalidade democrática. E (ainda que nos limites da constitucionalidade salvaguardada pelo Tribunal Constitucional), poderia levar a vida democrática ao extremo de um regime de sucessivas ditaduras de maioria parlamentar, entre eleições, que se traduziria num rosário de regimes legais contrários entre si: em cada legislatura, conforme a maioria parlamentar, uma nova lei do aborto, uma nova lei da eutanásia, uma nova lei da identidade de género, e por aí adiante. Seria eventualmente constitucional… mas não seria saudavelmente constitucional…
4. Ora, o mais fundamental de todos os fundamentais princípios enunciado pela nossa Constituição é o princípio da dignidade da pessoa humana. As primeiras palavras do texto constitucional português da Terceira República são estas: «Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana». Como diz o nosso Povo, «rima e é verdade». E isto foi aprovado por unanimidade, em 1976. O que quer dizer — note-se bem — que a própria soberania da Terceira República está limitada pela dignidade da pessoa humana. Encontra-se aqui uma concepção humanista e personalista da nossa Constituição, que a coloca (e com destaque) entre as primeiras Constituições da última geração, no espírito do chamado «constitucionalismo moderno». Mérito que cabe a todos os partidos constituintes que votaram por unanimidade essa disposição basilar, como já se disse; mas que pode ser especialmente atribuído a grandes figuras pessoais de deputados constituintes, sobretudo da 2ª Comissão, entre as quais, sem desdouro para ninguém, se destacou a pessoa de Jorge Miranda — a quem, neste sentido, não é excessivo atribuir o nome de Pai da Constituição.
5. Ora, a dignidade da pessoa humana não é igual a soberania da pessoa humana. Se cada um pudesse fazer sem limites, ainda que só de si mesmo, o que bem lhe apetecesse, poderia talvez dizer-se que a República se baseava na liberdade da pessoa humana; mas não se poderia dizer que se baseava na (eminente) dignidade da pessoa humana. Sem dúvida, a dignidade pessoal implica liberdade individual; mas essa dignidade não é igual a uma absoluta e discricionária liberdade, ainda que de cada um sobre si próprio. Nesta base, seria impossível fundamentar um «pacto social» que não fosse constantemente arbitrário e anulável; e nada poderia ser afirmado como fundamental, a não ser paradoxalmente o arbítrio individual.
6. A este propósito, é curioso constatar que as ideologias (de extrema esquerda e de extrema direita) que defendem a preferência de políticas colectivistas para a vida económica e social (isto é, na ordem material), são as mesmas que também defendem a preferência por políticas individualistas na ordem espiritual. Numa espécie de soma: de um individualismo libertário hedonista (uma super irresponsabilidade individual), com uma alienação individual no colectivo social e económico (uma outra super irresponsabilidade individual).
7. Depois da enunciação da base constitucional da dignidade da pessoa humana, e logo de seguida, a Constituição portuguesa faz a listagem enunciativa dos «Direitos, liberdades e garantias». E começa dizendo assim: «A vida humana é inviolável. Em caso algum haverá pena de morte».
Seria difícil ser mais peremptório. Trata-se do fundamental direito à vida claramente em termos absolutos. Ora, todos os direitos pessoais humanos são, não apenas invioláveis, nem apenas impostergáveis, mas também irrenunciáveis. É isso mesmo o que desde a gloriosa Revolução Liberal, e expressamente desde a Revolução Francesa, foi proclamado e nunca mais desdito. Assim, o Estado não pode nem «violar» nem «postergar» o direito humano à vida. E a pessoa (por razão da sua eminente dignidade) não pode «renunciar» à inviolabilidade da sua vida, nem por si, nem (muito menos) por outros a quem peça «assistência».
8. Se se admitisse que a pessoa pode renunciar ao seu direito à vida, que é o primeiro de todos os direitos fundamentais (como a Constituição logo declarou em primeiro lugar e por palavras enfáticas que não foram repetidas para outros direitos), então, e por maioria de razão, poderia também renunciar a outros direitos fundamentais (digamos assim) menores. Quem pode o mais, pode o menos. Poderia, por exemplo, prostituir-se livremente (exigindo ao Estado ser «assistida» nesse seu exercício de liberdade). Poderia dar-se em escravidão, por tempo determinado ou indeterminado. Poderia auto-mutilar-se sexualmente (recorrendo à assistência de médicos no Serviço Nacional de Saúde). Poderia legítima e legalmente vincular-se por um contrato de trabalho gratuito e sem horário. Poderia livremente drogar-se. Poderia decidir renunciar ao seu direito social à educação escolar, e não frequentar o ensino escolar obrigatório. E por aí adiante. Ao fim e ao cabo, cada um poderia renunciar aos seus direitos fundamentais, e em correspondência não haveria nenhuma coisa de inviolável em matéria de direitos humanos, pessoais e sociais. Não é evidente o absurdo?
9. Recorde-se que, a propósito da questão constitucional do aborto, o nosso Tribunal Constitucional assentou que o princípio da inviolabilidade da vida humana se aplica à própria vida intra-uterina. E apenas admitiu o aborto como caso de conflito entre direitos fundamentais (o que ainda não foi invocado na eutanásia, ao menos por enquanto), alegando que nesse caso duas vidas estão em alternativa: a vida do filho, e a vida da mãe, embora entendida esta vida da mãe na sua dimensão de «direito ao desenvolvimento da personalidade» — aliás em termos desproporcionados e abusivamente, sem necessidade de quaisquer justificações.
10. Mas ainda que se chegasse ao limite de aceitar que cada um pode legitimamente renunciar aos seus direitos fundamentais, e que, em especial, pode violar a sua própria vida, nunca isso poderia ter o alcance jurídico externo de desvincular os outros da observância do princípio que os proíbe de violar a vida humana. Como é óbvio, não há razão para postular que a renúncia pessoal aos direitos humanos próprios, além de ser pessoalmente contrário ao princípio da irrenunciabilidade dos direitos humanos, ainda por cima tem o efeito de desvincular terceiros. Assim, a simples legalização do acto pessoal do suicida (que não é um direito fundamental ao suicídio) nunca poderia justificar a licitude do acto homicida de uma outra pessoa. O conceito de «assistência» no suicídio não passa de uma invenção semântica, para disfarçar um acto que é objectivamente homicida. O dever jurídico de assistência é restrito a situações exactamente opostas, de perigo de vida. E não se argumente que esta assistência é uma liberdade individual. Toda a gente sabe que as liberdades têm uma justificação; e que há «liberdades» constitucionalmente proibidas ou restringidas.
Assim, em Portugal, e como já ilustres constitucionalistas vieram publicamente defender, a eutanásia deve considerar-se inconstitucional.