1 Podia achar-se e haverá certamente quem ache que o Natal da pandemia terá sido o mais angustiante, mais desamparado, desde há muito tempo. Deixando no ar do país a incerteza como modo de vida.

Pois bem, não (mesmo recordando e lamentando quanto essa quadra foi mortífera graças à desnorteada incúria das altas esferas envolvidas).

Este Natal traz-nos já não a incerteza mas pelo contrário a opressiva certeza dos dias de chumbo que se anunciam. Por razões sociais e económicas, bem entendido, por uma fatal guerra na Europa, mas por outras certezas: há muito que não me lembro de um tempo onde se conjuguem factores políticos tão tóxicos em Portugal quanto nos dias que correm. Hoje, ano da (des)graça de 2022.

Não? Sim: o governo parece ter ficado aterrado (?) com o ter de lidar com uma maioria que tudo lhe permitiria, incluindo, a favor dos portugueses, a qualidade da escolha dos melhores para governar e a liberdade de reformar. Por exemplo. Desde que ganhou as eleições, o Executivo segue porém aos tombos por entre “casos”, intriga, descoordenação, ministros publicamente desautorizados pelos seus colaboradores próximos, remodelações patéticas, divisões internas. Sobre este pano de fundo, a sempre inexplicável ausência de estratégia – já dura há sete anos – traduzida que ao menos fosse numa ideia, numa reforma, numa convocação do país que transcendesse a selecção nacional de futebol. (Ou que ultrapassasse as propagandísticas promessas – tipo “médico de família” – que tal a como D. Sebastião nunca aparecem).

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Um governo que desgoverna é uma coisa muito séria. E a coleção de “casos” com governantes não são uma brincadeira: abuso de poder, arrogância tão ilimitada que só pode prejudicar ou mesmo obnubilar a acção governativa; confusão entre partido e governação nacional, conflitos de interesses e até suspeitas fundadas de corrupção. (Qualquer governo de centro-direita já teria sido apeado mil vezes e um houve até que, com maioria absoluta, foi liminarmente despedido da função.) Fora do governo, a corrupção parece que veio para ficar, só não se sabe é há quanto tempo já aí está: vai-se descobrindo.

O cenário parlamentar já conheceu maior qualidade e a partidarização da condução da “casa”, de tão sobranceira (e incolumemente) partidarizada, pasma qualquer ser normalmente constituído: o que é partidarizar senão atender aos interesses do PS, produzindo a constante sonorização e ampliação do Chega face à activíssima menorização do PSD? Nós sabemos: há que cumprir as NEPs (Normas de Execução Permanente) vindas do poder socialista. Sucede que podiam ter mais pudor: cívico, político, partidário. E moral. (Moral, sim. O dr. Soares de vez em quando ralhava-me: que eu tinha “uma concepção demasiado moralista da política”. Ao olhar para os estragos concretizados pelo entendimento que o PS tem do poder não me parece que esteja a tê-la) .

2 O que me traz está porém para lá do baço cansaço de uma má governação, onde a arrogância é inversamente proporcional aos resultados. Do que falo é do infortúnio de duas coincidências que, repito, julgo tóxicas. A primeira reside entre este deficiente estado de coisas político e, como dizer?, a inoperância de qualquer reação, resposta, eco. Um mistério. Indiferença? Apatia? Resignação? Desinteresse, alheamento? Divórcio intencional da política e da coisa pública como modo de indignação? Não percebo: então que é feito daqueles irados abaixo-assinados das oposições ou dos senadores do regime (os do costume) que faziam manchetes nos jornais no tempo de Passos Coelho? Para onde foi o aceso gosto da sociedade civil pela sua intervenção crítica, tão activa nesses anos tão activamente mal contados?

Ignoro as razões de comportamento tão resignado. Coincidindo ele porém com a“democracia portuguesa”, não só não há quem separe o trigo do joio, como a resignação subverte a utilidade do debate publico. Não tem nenhuma, apenas confrange e incomoda: confrange porque a apatia, a inércia, seja lá o que for, permite com estrondo que a espuma dos dias se vá sobrepondo ao destino do país. Amolece o espírito, confundindo-se a natureza dos problemas ou misturando sem critério questões de altíssima relevância com ninharias. E incomoda pela agressividade, a fulanização obsessiva, o uso do insulto, o recurso à  mentira.

3 A segunda coincidência é a simultaneidade – um em Belém, o outro, em S. Bento – entre Marcelo e Costa. Pode ter-me escapado alguma coisa, mas à vista desarmada cada um deles parece potenciar no outro o seu lado menos bom. Houve outras coabitações, temos referências. Até aqui nada nos provou que esta seja a mais indicada para conduzir o país,

(Pequeno entre parêntesis com importância: agora está na moda criticar abertamente o Presidente da República. Estou duplamente – mas tristemente – à vontade neste tema crucial: escrevi há sete anos, aqui mesmo, e dias antes da sua primeira eleição presidencial, o que julguei que tinha a escrever. Fui a primeira a fazê-lo porque queria ser a primeira a fazê-lo. Tendo o cuidado – ou tentando tê-lo – de não confundir a função com o “funcionário”. A vida que Marcelo Rebelo de Sousa e eu vivemos no Expresso e fora dele, a colaboração que mantivemos – não foi pouca – e a amizade que daí amadureceu não o mereceria. Tive ocasião de lhe manifestar privadamente críticas e dúvidas (e de lhe agradecer pessoalmente um gesto inesquecível). Sempre salvaguardando o amigo. Que o Chefe do Estado que ele é não suporte a jornalista que sou é algo de tão natural que me é absolutamente secundário. Sê-lo-ia menos se a amizade fosse na enxurrada. Mas se fosse, iria unilateralmente, não seria eu que a deixava ir. Tomo enfim estes anos como uma travessia que não me foi – não é – fácil. São coisas que acontecem e, como costumava dizer o saudoso Vítor Cunha Rego, “as coisas são que são”. Ponto final. (Um dia ainda hei-de voltar a isto.)

4E no entanto… apesar do que tenho por duas tristes coincidências e da embaraçante indiferença que parece ter-se colado ao país, julgo perceptíveis alguns mesmo que ténues sinais de rejeição. Uma espécie de alerta não orgânico da indispensabilidade de mudar. Falo obviamente de outro ciclo político. (Este, mesmo que demore, já não vai lá. Nem quando podia, foi. E quando precisaria – como agora – também não.) Sendo uma pura questão de tempo, alguma coisa, mesmo que só alguma coisa, começa a ocorrer na “democracia portuguesa”. As aspas – não é difícil de perceber mas sejamos precisos sinalizam a “democracia socialista” à qual chamam “portuguesa”. O PS usa-a como única e serve-se dela como dono. Está exausta, é infértil, o país está doente. Regrediu para além da guerra de hoje e da pandemia de ontem. Um dia será talvez possível que alguém encarne resolutamente a escolha de Portugal como prioridade. Contra as marés e os ventos dominantes, a começar pela coragem de destoar: ser impopular na opinião publicada; insultado pelas esquerdas, detestado pela media em vez de preferido. (Os guiões são sempre previsiveis). Só passado o cabo da coragem politica, valerá a pena o resto, apesar de indispensável: liderança, critério, escolhas, prioridades, sensibilidade  (a social e a outra).

Isso: o poder como serviço.

5 Novo parêntesis com importância: há muito que tudo – na forma, no ruído, na velocidade, no encarniçamento, na mediatização, na confrangedora leveza de alguns comentários, nalguns dos seus articulados e em certo sentido até no atabalhoamento do seu andar para frente e para trás – me aflige, envergonha e inquieta (por esta ordem) na questão da eutanásia. Estou certa que abriria a porta de uma irresponsabilíssima “facilitação”, caso vá adiante. Nunca – nem sequer aquando do também muito fracturante debate sobre a Interrupção Voluntária da Gravidez – se viu tal urgência numa corrida pela legalização a todo o custo e haja o que houver da eutanásia. Tanta que o país em vez de ser ouvido numa questão que é de pura consciência individual, e que é civilizacional antes de ser religiosa ou politica, é apenas meramente convidado a assinar uma agenda político-partidária.

Como um pesadelo, somos mais atormentados que esclarecidos com a colocação de tão grave tema num mero tabuleiro de jogo político, em vez de o tratar nacionalmente, de outra forma. Ou ao menos ouvindo 8 milhões de portugueses em lugar de 230.

Sim, tenho dúvidas, como muita gente séria. Mas já agora… e a propósito de “dignidade”, substantivo que tem estado omnipresente: não ficaria a dignidade mais bem servida na generalização efectiva dos cuidados paliativos do que numa licença para morrer que nenhuma das altas instâncias consultadas – médicas, científicas ou do foro ético – subscreveu?

PS: Recomendo a propósito o notabilíssimo artigo de Pedro Passos Coelho aqui publicado há dias. Um dos seus melhores auto-retratos. Talvez mesmo o melhor.