A CNN-Portugal divulgou recentemente a notícia de condenação pelo Tribunal de Contas de dois contra-almirantes, por ilegalidades financeiras ocorridas em 2017. A condenação tem uma tradução concreta em multas: num caso, num total de 84 unidades de conta, ou seja, cerca de €8.500 (1 UC=€102), e no outro, de 100 UC, ou seja, cerca de €10.000. Estão disponíveis na Internet, a sentença condenatória e o acórdão (ambos de 2023) que decidiu o recurso dos demandados sobre a sentença. Creio que ainda não há trânsito em julgado. Dito isto, é rara a condenação de oficiais-generais por irregularidades financeiras praticadas em serviço, o que me permite exprimir algumas perplexidades e fazer alguns comentários.
A primeira perplexidade é a escassa divulgação nos media. Numa época em que jornais e televisões enchem espaço e tempo com coisas que vão buscar a tantas fontes (outros media e redes sociais) é bizarro que nada digam sobre este caso; tanto mais que envolve irregularidades em despesas públicas, matéria a que os media costumam dar grande destaque; mesmo a CNN-Portugal passou a peça e não creio que a tenha repetido (ou “martelado”, como os media fazem tantas vezes com outras peças). O que explica esta seletividade na divulgação de factos? Com a sentença e o acórdão disponíveis na Internet, não convence dizerem que é um exclusivo da CNN-Portugal. E é uma desculpa dizer que ainda não há trânsito em julgado, quando não faltam jornalistas e comentadores a dar por condenados tantos cidadãos só por terem sido constituídos arguidos. Claro que haverá sempre a desculpa opaca das “opções editoriais”. Mas tem de haver algo mais, que explique este “silêncio ensurdecedor” – ainda que poucos o oiçam.
A segunda perplexidade é o silêncio absoluto de tantos oficiais que não se cansam de apontar falhas na gestão de dinheiros públicos, sobretudo aos atores políticos, enquanto proclamam que a conduta dos militares é exemplar. É sabido que a maioria dos militares é corporativista; por isso, não pode surpreender este silêncio seletivo: visa esconder falhas na sua corporação (ou tribo?). Mas o silêncio pode dever-se a que a larga maioria das pessoas forma opiniões só pelo que dizem os media: para as massas, se não sai nos media, não “aconteceu” e desconhecem. Se for propositado o silêncio mediático, então o fim a alcançar com tal silêncio pode ser fazer de conta que não ocorreu, para não manchar a narrativa da exemplar conduta dos militares. Mas a quem caberia a iniciativa? E a que se deverá, a existir, a cumplicidade dos media neste silêncio?
A terceira perplexidade é o silêncio absoluto das chefias militares, sobretudo dos que chefiavam os demandados à data dos factos em juízo. Vou explorar este ponto aqui e agora, em duas vertentes: as decisões controversas; e a responsabilidade dos chefes dos demandados.
As decisões controversas dos oficiais demandados referem-se, num caso, a empreitadas de construção civil e, noutro, a fornecimentos de peixe, ambos em 2017. Mesmo como hipótese teórica, é difícil conceber que, num belo dia, um destes contra-almirantes se levantou de manhã e decidiu sozinho fazer umas obras (no gabinete do comandante da Armada, se não me engano) e, o outro, adquirir peixe com urgência em quantidades significativas.
Os dois contra-almirantes demandados estão no terceiro nível da hierarquia desde o topo: estão diretamente subordinados a um vice-almirante e este ao comandante da Armada (CEMA) – e este é subordinado do/a ministro/a da Defesa Nacional (sim, os comandantes dos exércitos são subordinados dos ministros, pois os exércitos pertencem à administração direta do Estado e os ministros da Defesa Nacional têm poder de direção sobre a mesma). Nenhum dos demandados apontou responsabilidades para cima, mas um deles sugeriu para baixo. Por outras palavras, evitaram trazer os seus chefes ao processo; permitem, assim, que se conclua que não estavam a obedecer a ordens, mesmo que verbais e sem testemunhas. Quer dizer, estavam a agir “livre, voluntária e conscientemente”.
Mas está aqui a perplexidade: como podem obras relativas ao gabinete do CEMA, ou aquisição de peixe para compensar os gastos extraordinários devidos ao pessoal envolvido no apoio ao combate aos incêndios de junho de 2017, não ser do conhecimento e, depois, não ter suscitado orientações e decisões – por exemplo, de pressão para concluírem os referidos processos rapidamente – dos chefes acima dos oficiais demandados?
Como explicar que, pelo menos face à referida notícia, esses chefes fiquem em silêncio público, e não venham explicar os factos; em especial, que ordens exatamente lhes foram dadas, se foram desobedecidos e qual a sua responsabilidade nas situações? Cabe ainda escrutinar os membros do Governo com responsabilidades na matéria, sobre o seu envolvimento: sabiam? Deram cobertura? Já agora: vão, políticos e militares cujas imagens beneficiaram dos processos em causa, oferecer-se para pagar parte das multas aplicadas aos demandados?
Não faltaram oficiais, a propósito do Caso Mondego, a fazer declarações públicas nas quais notavam a natureza hierárquica dos exércitos, e como a obediência é essencial e nuclear na vida militar. Tantos chefes militares, e atores políticos, acolhem pessoalmente, e com gosto, elogios aos serviços que chefiam – que são, implicitamente, às suas pessoas. Mas quando é para assumir as responsabilidades pelo que corre mal, “desaparecem” todos?
Estariam os demandados a agir livremente, ainda que não declarem o contrário? Parece que seguir os procedimentos que o Tribunal de Contas, já por duas vezes, considera que deviam ter sido seguidos levaria a alcançar os mesmos resultados, mas mais tarde. E que consequências haveria para os demandados se essa demora contrariasse aquilo que os seus superiores hierárquicos – políticos e militares, ou só militares – visavam?
É oportuno recordar que, no relatório da Comissão Técnica Independente sobre o Incêndio de 17 a 24 de junho de 2017, foi notado que “O aparecimento do Comandante Naval na área de operações, por exemplo, pode ter dado algum tipo de dividendos à Marinha Portuguesa do ponto de vista político mas é negativo para as Forças Armadas e para o CEMGFA.” (p.289). Parece que foram recolhidos dividendos: o então Comandante Naval é o atual CEMA; e o então CEMA meses depois ascendeu a CEMGFA. Pode ter sido coincidência. Ou ter havido uma relação de causa-efeito. Só quem os escolheu pode vir a público informar em que sustentou as decisões para os elevar a estes cargos de topo das Forças Armadas. Sem uma explicação sólida, é amplo o espaço para a especulação e para prejudicar a imagem dos envolvidos.
Os demandados estavam no topo das respetivas carreiras militares (que termina em contra-almirante nas respetivas classes); porém, qualquer militar sabe que contrariar orientações dos seus chefes militares, mesmo que não estejam escritas, pode trazer consequências nocivas para quem o ouse, por exemplo, com uma exoneração prematura ou o fim de eventuais sinecuras posteriores, em qualquer dos casos com marginalização e um significativo desgaste da imagem perante pares e subordinados, e até publicamente. Mas foi exatamente isso que lhes aconteceu, agravado com multas de mais do dobro das suas remunerações mensais. A ter ocorrido, valeu a pena a condescendência com as pressas? Só se desilude quem teve ilusões.