Duas afirmações dos membros do Governo do Ministério da Defesa Nacional (MDN) na audição de 14-Jun na Comissão de Defesa Nacional demonstraram que não deve ser o MDN a conduzir a política pública de Autoridade Marítima; nem deve competir ao MDN dirigir a Polícia Marítima (PM), que nem consta da respetiva lei orgânica.

Disse a ministra Helena Carreiras: “não está nos nossos planos extinguir a Polícia Marítima”. E o secretário de Estado Marco Ferreira anunciou: “[…] já a seguir […], é nossa intenção olhar efetivamente para essa matéria” (“o complexo legislativo em torno da PM, porque ele é fragmentado e antigo”).

Começo por notar que o XXIII Governo, que a ministra Helena Carreiras e o secretário de Estado Marco Ferreira integram desde que tomou posse em 2022, e cujo Programa foi elaborado certamente com o seu contributo, diz (só) isto: “Concluir a consolidação do enquadramento e reforçar as estruturas da Autoridade Marítima Nacional no ordenamento jurídico nacional”. Uma frase nebulosa, já usada noutros programas do PS; e exclui a PM. De facto, de acordo com a Constituição (CRP) e a lei, a PM depende do Governo e, como as demais polícias, não pode depender de um chefe militar como é a AMN (até os serviços do MDN e os gabinetes dos membros do Governo lhe chamam “Almirante AMN”…).

Ao fim de um ano no MDN, esta equipa ministerial terá concluído que tem de anunciar algo neste domínio. Mas o anúncio é só de uma intenção de olhar. Anúncios para acalmar protestos ou escrutínio, ou para passar uma imagem de obra feita é algo a que o PS no governo habituou os portugueses. É tão poucochinho.

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É extraordinário, mas este anúncio de reforma não é feito pela ministra, a quem compete conduzir a política, e iniciar reformas. A ministra só disse que não pensa extinguir a PM. Face ao que já saberá, até pela via académica, sabe a pouco, é poucochinho.

Com maioria absoluta, o XXIII Governo pode fazer a reforma que quiser. Mas esta equipa não tem um plano de ação, nem ideias. O secretário de Estado Marco Ferreira até disse procurar um “ponto de contacto” entre os deputados… e entre os especialistas, não era mais razoável? É tudo poucochinho.

Lá debitou os chavões do costume (“sinergias”, “eficiência”, etc), as palavras de código para impressionar a Armada e os leigos, e soar bem nos media. Se a eficiência não fosse um chavão, esta equipa tratava de acabar com as duplicações, por exemplo, por fusão da PM com a Unidade de Controlo Costeiro e de Fronteiras da GNR, e por fusão da Direção-Geral da Autoridade Marítima (DGAM) com a Direção-Geral de Recursos Naturais, Segurança e Serviços Marítimos (DGRM); ou, só dentro do MDN, promovia a fusão do Serviço de Busca e Salvamento Marítimo com o Serviço de Busca e Salvamento Aéreo; o salvamento no mar exige quase sempre meios aéreos. Menos do que poucochinho: nada.

Como se este vazio de ideias e projetos fosse pouco, ainda mais num governo com maioria absoluta, a intenção de “olhar efetivamente para essa matéria” é para realizar “já a seguir”… Não é só a nebulosidade da expressão que choca. É o empurrar para sabe-se lá quando. E é a posição de ambos (a ministra não corrigiu o seu secretário de Estado) que não vão tratar desta matéria, enquanto as leis de programação estão no parlamento, e o Conceito Estratégico de Defesa Nacional e os diplomas que o densificam estão em formulação no MDN. Poucochinho e daqui a uns anos, portanto…

Era difícil conceber uma declaração tão expressiva da incapacidade, ou falta de vontade, do MDN para tratar da Autoridade Marítima, e da PM em especial. Por outras palavras, confirmaram que o MDN não conduz a política pública de Autoridade Marítima, nem dirige a PM. O povo diz, e muito justamente: não fazem, nem saem de cima.

Mais: na Administração Interna, três membros do Governo conduzem as políticas de Segurança Interna, Proteção Civil e Controlo de Fronteiras com reformas e desafios sérios quase diários, e mostram resultados, o principal critério de avaliação do primeiro-ministro (disse ele aos media). Na Defesa, dois membros do Governo, que só ocasionalmente têm desafios sérios, deixam a cargo de funcionários públicos a condução da política pública de Autoridade Marítima – e nem sequer têm, no resto, resultados notáveis. É poucochinho.

Uma intenção sincera de reforma levava à criação de um grupo de especialistas – com os interesses corporativistas representados, mas em minoria – mandatado pela ministra para formular projetos de diplomas legais e administrativos que concretizem uma reforma, de acordo com as orientações políticas do Governo. Mas nem isso esta equipa faz.

Insisto: tudo isto é poucochinho. Mas não é surpresa, dada a conclusão do experiente e saudoso Miranda Calha de que “os políticos têm receio de enfrentar os almirantes”. E ele nem estava a pensar no atual Comandante da Armada, que tantos intimida com as suas ambições políticas e claque mediática. Um abalo na supremacia civil não é poucochinho.

De facto, os dirigentes da Armada (“os almirantes”) conseguiram bloquear em 1993 a reforma da Autoridade Marítima iniciada em 1991; e, apesar de terem de aceitar a criação da PM como força de segurança nacional em 1995, conseguiram impedir que tivesse lei orgânica – continuando a ser, na prática, o “braço operacional do capitão de porto”. E têm continuado a impedir, levando sucessivos governos e deputados a bloquear os projetos de lei orgânica da PM que o PCP apresentou no parlamento desde 2016 – e nada apresentam para melhorar ou em alternativa. Como outras, esta equipa não faz, nem sai de cima.

Também a reforma da Autoridade Marítima, que o ministro António Vitorino iniciou em 1996, em 2002 ficou aquém dos objetivos fixados. Mas “os almirantes” conseguiram o essencial: garantir que a Armada continuava a dominar esta política pública e a ganhar com ela – e os atores políticos ficaram a repetir chavões (“duplo uso”, “poupanças”, “sinergias”, etc), que a Armada plantou e floresceram nos media; e ficaram a negar o óbvio, isto é, que a Armada não apoia nada na Autoridade Marítima, a Armada domina e manda na Autoridade Marítima e na PM, por omissão política.

E, já esta equipa ministerial, tem-se mostrado incapaz até de mandar a Armada cumprir a lei, tal como a Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos determinou no Parecer 307/2020. Nem sequer fornece os documentos relativos à organização interna do Sistema Nacional de Busca e Salvamento Marítimo, dirigido pela ministra, ou relativos à criação do Sistema Costa Segura (aliás, outra duplicação, que contraria a apregoada eficiência…), cuja despesa, presumo, não poderia realizar-se sem aprovação política.

O critério típico de avaliação das políticas públicas entre os leigos (as massas, e a maioria dos especialistas de outros setores) e a maioria dos atores políticos é o alarme mediático: se saem muitas más peças nos media há crise; se não saem, está tudo bem.

Este é um critério ajustado à proverbial superficialidade dos portugueses. Por isso, é forte o empenho da Armada em dominar a comunicação da PM, e da Autoridade Marítima em geral: ao promover peças apologéticas e evitar má imprensa, evita as crises nos media, pode dizer que está tudo bem, e resistir à perda do domínio do setor – e dos benefícios. Mas há problemas graves, e as políticas para os enfrentar acabam por ser traumáticas, quando são adotadas sob a pressão de crises. Listo a seguir os mais importantes e mais urgentes, como uma agenda de reformas:

  1. Tornar a AMN numa função do diretor-geral da Autoridade Marítima, e acabar com a acumulação de cinco militares nos serviços da Autoridade Marítima (trata-se só de cumprir o espírito e a letra da CRP).
  2. Criar um estatuto da condição de militarizado, ou então abandonar de todo este termo e conceito, cuja definição inexiste na lei, e é fluida na doutrina.
  3. Criar a lei orgânica da PM. Ou, melhor ainda, fundir a PM com a UCCF da GNR na Guarda Marítima. Seja como for, acabar com o exclusivo das chefias por oficiais da Armada, sem concurso e só da classe de Marinha sem formação policial, na PM.
  4. Fundir a DGAM e a DGRM numa Direção-Geral da Administração Marítima, civil e sem militares em acumulação.
  5. Criar e densificar uma política pública de combate à poluição do mar, que hoje só tem substância em convenções internacionais e em documentos administrativos.
  6. Reformar o assinalamento e o posicionamento marítimos, integrando-os com a hidrografia, como serviços civis que servem a navegação. Em especial, densificar a carreira dos faroleiros, acabando com a chefia por inerência por oficiais da Armada, raramente com conhecimentos no setor.
  7. Fundir os sistemas nacionais de busca e salvamento marítimo e aéreo.

Só uma fé tenaz leva a crer que algo de substantivo desta lista será feito por esta equipa – e podia ser feito em dois anos. Mas uma vez que não fazem, ao menos saiam de cima, e entreguem as posições de cima aos ministérios que têm vocação para conduzir a política e subpolíticas da Autoridade Marítima: o Mar e a Administração Interna.