Durante muitos anos verificou-se um crescimento desordenado das cidades, não se considerando as consequências que o mesmo viria a ter no longo prazo. Algumas intervenções em tecidos urbanos revelaram-se graves em termos sociais e tiveram nefastas consequências tais como a desertificação noturna, a insegurança, a expulsão da população “nativa”, a segregação, a exclusão social e o aparecimento de conflitos.

Aos poucos começou a surgir uma consciencialização ambiental e a perceção de que o crescimento descontrolado das cidades nem sempre é sinónimo de qualidade mas muitas vezes do seu inverso, sobressaindo a necessidade de qualificar a cidade existente e de controlar a sua expansão.

A procura da coesão social deve constituir hoje um dos objetivos principais das políticas urbanas, conhecendo-se o papel positivo que a reabilitação pode ter ao nível social, ao assegurar a estabilidade através da preservação dos valores sociais e culturais das comunidades locais. A participação da população torna-se relevante em todas as etapas do processo de reabilitação, contribuindo para o bom decurso das intervenções e para o seu êxito, a longo prazo.

No “Estudo de Renovação Urbana do Barredo”, realizado por Fernando Távora, em 1968, são introduzidas, a nível nacional, as primeiras preocupações com a dimensão social e funcional do património urbano, sendo apresentada a primeira proposta de reabilitação urbana com estas características. Sobre esta ligação entre a dimensão cultural e social da intervenção, num excerto de imensa atualidade, Fernando Távora referia o seguinte no estudo atrás citado:

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“Cremos que não deverão destruir-se, apenas por aspetos de ordem prática (insalubridade e estado de conservação, sobreocupação, mau funcionamento urbano, etc.) os sectores da Cidade que representam valores culturais, ainda que para os substituir por novos valores – que noutros locais poderão criar-se –, devendo ainda não ser esquecido que um valor cultural é um todo e não partes de um todo, porque estas partes (caso dos edifícios a conservar) se inserem num contexto em que as peças mais ou menos significantes se completam e apoiam. Por outro lado ainda, e para nós mais importante porque os homens valem infinitamente mais do que as casas, a deslocação total da população que uma ocupação dessas implica (por natureza as novas construções impõem, pelo seu custo, ocupantes de diverso nível económico e social) parece-nos extremamente desumana”.

Neste contexto, assistiu-se na cidade de Lisboa, nas últimas décadas, a um novo fenómeno ao nível da intervenção de pequena escala em bairros históricos, mesmo em períodos de contração do mercado da construção, revelando uma forma distinta de encarar a reabilitação urbana.

O conceito de acupuntura urbana visa, através de pequenas intervenções pontuais, melhorar a sustentabilidade e a qualidade de vida na cidade. Por via de pequenas intervenções é impulsionado o começo de uma mudança, que nunca é imediata. Trata-se de uma estratégia muito adequada aos bairros históricos e que melhora social e culturalmente uma área, criando uma nova energia que se expande nesse local.

Através da minha experiência pessoal na Associação Just a Change, da qual faço parte desde 2010, aproximei-me de várias pessoas que viviam em condições precárias nas zonas históricas de Lisboa. E pude testemunhar a mudança de vida que estas pessoas sofreram depois de reabilitarmos as suas casas.

Esta Associação procura combater a pobreza habitacional em Portugal através de pequenas intervenções em casas degradadas. Os trabalhos são realizados por jovens voluntários que se associam à luta pela dignidade humana, tornando o dia-a-dia das pessoas carenciadas mais confortável e contribuindo para que estas sejam mais valorizadas e respeitadas.

Uma nova habitação influencia o lugar onde se insere, o bairro e a comunidade. Contudo, não se trata apenas de uma influência externa, pois o espaço interior da habitação tem repercussões na vivência dos proprietários que dela usufruem. A sua organização interior traduz simultaneamente as intenções do utilizador e representam-no. A garantia do acesso a uma habitação digna e adequada para todos, implica melhorar o ambiente e a qualidade de vida da população, mantendo no local as pessoas mais desfavorecidas e melhorando a qualidade dos espaços públicos para o bem de todos.

Em Portugal, existem mais de 420.000 pessoas a viver em pobreza habitacional. 23% da população não consegue manter a casa quente e mais de 60.000 não tem água canalizada nem saneamento (INE, 2018).

Os associados e os jovens voluntários do Just a Change têm consciência desta realidade e querem ajudar a combater os problemas de socialização na cidade através de pequenas intervenções cirúrgicas e de reduzido custo. Pretendem assim contribuir, de uma maneira gradual, para a revitalização de uma habitação, de um bairro ou mesmo de uma cidade. Investigam maneiras de desenvolver um trabalho integrado com a comunidade e buscam cada vez mais a proximidade da população. Defendem uma arquitetura social, onde a prioridade são as pessoas. Não ambicionam a construção em grande escala, mas sim as pequenas intervenções que façam a diferença no contexto onde se inserem, ainda que isso já não traga a visibilidade da obra de autor e das revistas de arquitetura.

Em conclusão, importa sublinhar que as pessoas (o tecido social) são uma mais-valia para os locais que habitam (o tecido físico) e não devem ser excluídas do processo de reabilitação, pois mantêm a identidade própria do lugar e representam a memória coletiva de muitas gerações. É preciso valorizar aspetos como a vivência de bairro, a vida comunitária e as relações de vizinhança que se têm vindo a perder nas últimas décadas em vários locais. Estas dinâmicas sociais são essenciais, não só para a fixação da população local, como para a valorização da própria cidade onde estão integradas, contribuindo para uma autenticidade que traz importantes benefícios sociais, culturais e económicos.

Sara Oom Sousa, 28 anos, é arquitecta no atelier VLMA. Em 2010, juntamente com 5 amigos, fundou o Just a Change, uma associação que combate a pobreza habitacional em Portugal através do voluntariado jovem. É também co-fundadora da marca de mobiliário portuguesa Fuschini e da Solo Ceramic (uma marca de cerâmica feita à mão). Juntou-se aos Global Shapers Lisbon Hub no final de 2019.