A saída de cena de Pedro Passos Coelho é um enorme terramoto político. Passos é o homem que derrotou Sócrates, venceu o resgate e liderou a oposição, após chefiar dois governos. É difícil escrever-lhe um elogio que não pareça uma despedida. A verdade é que sempre me descobri na posição embaraçosa de admirar nele o que toda a gente detestava: a gravidade institucional, que sempre me pareceu mais respeitável que a política de afectos; o discurso pedagógico, feito para instruir e não para vender; a persistência teimosa, que sobrepunha a ética ao cálculo de ocasião.

Mas, mais do que o homem, interessa-me o seu legado. O afastamento de Passos abre um novo ciclo político no País. O PSD repensará a sua liderança e toda a direita terá de reposicionar-se para crescer. Como não sou do PSD, não discutirei a liderança do PSD. Como sou de direita, tenciono discutir o rumo que ela deve tomar.

Há dias, no Público, Paulo Rangel e Pedro Duarte assinavam duas interessantes reflexões sobre o futuro do PSD e do seu espaço político. De formas distintas, ambos se dão a grandes trabalhos para descolar de Passos. Rangel, mais subtil, afirma que o partido “é pela liberdade, mas não é liberal”. Duarte, mais drástico, quer rejeitar o “dogmatismo financista e neoliberal”.

É curioso que dois dirigentes do PSD recusem o liberalismo com mais veemência do que o socialismo. Contudo, julgo que ambos tocam noutra ferida, mais profunda e mais interessante. Nas suas diatribes contra o liberalismo, criticam uma arena política que, da esquerda à direita, absolutizou a economia como único critério e abandonou qualquer projecto espiritual para o País.

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Não é um fenómeno exclusivo do PSD. Parece ser característica das sociedades pós-modernas que os políticos discutam acaloradamente o défice, a dívida e a exportação de hortaliças, mas hesitem em debater questões morais. Não era assim há vinte anos, mas hoje, a direita – e, particularmente, o PSD – não tem uma visão abrangente sobre o homem e a sociedade. As mais escandalosas minudências são votadas com disciplina de voto, mas o PSD não tem uma resposta segura para dar sobre a defesa da vida humana. As dimensões mais fundamentais da nossa sociedade são sistematicamente discutidas às três pancadas, entre pruridos e tabus, e acabam remetidas para o foro da consciência individual dos deputados.

Duarte quer o partido norteado por “valores humanistas” e Rangel invoca “a dignidade da pessoa humana”. Mas o que quer isto dizer, quando levado ao concreto? É o personalismo de Mounier, Maritain e dos grandes democrata-cristãos, ou é o atomismo social-democrata, vestido com embrulho reluzente? É a defesa de uma sociedade centrada na pessoa, que fortaleça as famílias e os laços comunitários, ou a perspectiva individualista, que destrói os corpos intermédios para transformar cada homem num mero decisor económico e num beneficiário directo da acção estatal?

E quanto ao valor do trabalho? Em tempos, esta foi uma argamassa forte, que agregava as direitas e permitia consensos com uma esquerda moderada. Estaremos hoje condenados a discutir o trabalho numa infeliz dicotomia entre a liberalização absoluta e o activismo sindical? Não terá a direita uma palavra a dizer sobre a qualificação de adultos e a reinserção dos desempregados de longa duração? Ou em defesa do mérito no funcionalismo público? Ou sobre a tributação das horas extraordinárias? Ou sobre a precariedade das novas gerações? Ou sobre a Segurança Social?

Também seria importante que a direita olhasse para a cultura sem estigmas e propusesse um programa de recuperação do património histórico, afirmando um patriotismo sereno e descomplexado. No ensino, há tanto caminho a fazer pela avaliação dos professores, pela liberdade das famílias e pela autonomia das escolas. Haverá coragem para isso? Haverá vontade para repensar o Estado Social, favorecendo a descentralização e as sinergias com o Terceiro Sector, como sugeria Santana Lopes? Por fim, terá a direita a audácia de repensar o enquadramento geopolítico português, perseverando na UE, mas redescobrindo pontos de contacto com a lusofonia e os aliados atlânticos?

Com a saída de Passos, alguns descobrem uma oportunidade para encostar o PSD à esquerda. Outros desejam liberalizar a direita e fazer do novo ciclo um aprofundamento do anterior. É prudente resistir a ambas as tentações. Uma direita amestrada pela esquerda não contribui para o debate democrático e está condenada a esmorecer, porque não representa o seu próprio eleitorado. Uma direita exclusivamente liberal, que se deixe enredar no discurso economicista, abdica de ter desígnios abrangentes para o País e torna-se sensaborona e desapontante.

De resto, as derrotas clamorosas de Teresa Leal Coelho e Álvaro Almeida mostram bem como os eleitores – mesmo os eleitores urbanos, burgueses e cosmopolitas – rejeitam candidaturas sem projecto e sem ideias, cuja única bandeira seja a redução fiscal. Por outro lado, o surpreendente resultado de Assunção Cristas introduz um dado importante sobre a vitalidade de um eleitorado conservador e católico, que muitos julgavam em declínio e que não pode ser alienado. Em freguesias como a Estrela ou Belém, o CDS tem mais votos sozinho do que, há quatro anos, em coligação com o PSD. Nas Avenidas Novas, Raquel Abecasis, antiga jornalista da Rádio Renascença, fica a sessenta votos de vencer. São indicadores importantes, que medem o pulso ao eleitorado de direita, e que devem ser tidos em conta no novo ciclo político.

O País não precisa de uma direita sem projecto, à espera que o poder lhe caia nas mãos. Mais do que nunca, a direita deve ser forte e descomplexada, ouvir a sociedade, formular sínteses doutrinárias próprias e construir alternativas, sem se deixar acantonar no passado. Foi assim que Assunção Cristas retirou a maioria absoluta a Fernando Medina. É assim que se pode derrotar António Costa.

Estudante de ciência política, 21 anos