Como eleitora americana, não conheço pessoalmente nenhum dos candidatos, nunca vou conhecer e nunca votarei com esse critério pessoal em mente. Voto nas posições políticas e no trabalho passado, de serviço público. Esta eleição está a provocar muitas emoções em todo o mundo e muito turbilhão social. Isto não tem a ver com os candidatos pessoalmente. Não tem a ver com o Presidente Trump ter cabelo laranja e ser chacota dos media, nem com Joe Biden ter ar de quem está sonolento ou sob o efeito de algum estupefaciente.
O candidato democrata à presidência dos Estados Unidos, Joe Biden, referiu várias vezes no último debate, a 22 de Outubro, que os eleitores teriam que escolher entre os diferentes tipos de carácter dos dois candidatos. Ele apresentou-se como o candidato que, em termos pessoais e éticos, seria mais merecedor de confiança.
Mas a eleição presidencial americana não tem a ver com o carácter dos candidatos, mas com ideias políticas, sociais e religiosas extremamente opostas e que nunca estiveram tão bipolarizadas.
Não é sobre o racismo. Como diz um artigo, “This Election Isn’t Just Binary, It’s Existential”, o movimento Black Lives Matter (BLM) não só propõe uma filosofia muito específica, como também tem uma agenda política. Joe Biden e todo o partido democrata está alinhado com esta filosofia, como tem referido diversas vezes nos recentes debates presidenciais. Nesta filosofia, os Estados Unidos são retratados como um país sistematicamente racista e mau. Precisa de ter a sua cultura cancelada ou então ser queimada até às cinzas. Propõem, com o “Projeto 1619”, rever toda a história negativa dos Estados Unidos.
Têm também uma agenda política muito abrangente. Promovem uma legislação, “BREATHE act”, que elimina todas as prisões federais e tira fundos de polícias, dá bolsas a escolas para desenvolver e implementer currículo anti-capitalista, promove um sistema de saúde socialista, incluindo a prática do aborto pago pelo Estado, e cria uma “Comissão para a Verdade, Cura Racial e Transformação”, que pede desculpa pelas políticas supostamente racistas dos Estados Unidos. Este debate sobre o racismo não tem tanto a ver com o racismo em si, pois ninguém se auto-intitula racista. Todos estarão de acordo que o racismo é algo que existe, é péssimo e assola a humanidade como um todo. Será necessário um trabalho contínuo com o objetivo de o eliminar. Esta discussão tem, antes, a ver com a essência dos Estados Unidos: se é boa, se começou com valores nobres e importantes de se preservar, ou se é essencialmente e sistematicamente má, é preciso cancelar ou então queimar. Não é só binário, é existencial, como diz o artigo. Os dois lados estão dramaticamente divididos e os dois candidatos à presidência alinham-se com as filosofias de cada lado.
Não é sobre o clima. Joe Biden terminou o ultimo debate, dizendo que acreditava na ciência e nos factos acima da ficção. A ciência não é objeto de fé, mas uma forma de conhecimento da realidade entre muitas, como história e filosofia por exemplo. Existem factos dos dois lados e não se vota num candidato porque ele diz factos, ou no outro porque ele diz ficção. Os dois candidatos apresentam factos, mas os dois interpretam os factos de forma diferente, de acordo com as suas filosofias opostas. A posição que Joe Biden defende, considera que os fogos e os furacões são fruto do mau uso do planeta e que a natureza é mais importante do que a vida humana. Se for preciso prejudicar a vida humana ou baixar o nível de natalidade para salvaguardar o planeta, isso é prioritário. A filosofia de Trump foi encapsulada numa expressão repetida pelo vice-presidente Mike Pence no seu debate: “Follow the signs”, vamos seguir os sinais. Podemos ir verificando, pela ciência, se o planeta está realmente em perigo e se a nossa ação pode mudar algo em relação a isso, mas a vida humana, a sua organização económica e de sustento, está inestimavelmente acima disso. O eleitor americano votará na filosofia que mais se assemelha à sua e não aos “factos”.
É sobre o socialismo. Um europeu pode estranhar este facto, mas o socialismo não é um sistema político reverenciado por todos. Certamente não o é pela “maioria silenciosa” dos Estados Unidos. Também não o é pela Igreja Católica, que condena o socialismo na encíclica “Rerum Novarum”, escrita em 1891, quando surgiram as “coisas novas” de socialismo e do capitalismo. O Presidente Trump criticou o socialismo da Venezuela no último “State of the Union address” e disse que os Estados Unidos nunca será socialista. O termo socialista veio muitas vezes à tona nos debates. Trump acusou Biden de querer transformar o sistema de saúde em socialista e a economia também. Biden não desmente e está associado a Bernie Sanders, político abertamente socialista.
É sobre a liberdade religiosa. Um americano chamado Sean Feucht, cantor cristão, tem-se tornado mais activo na política. No início da pandemia, quando os governadores fecharam igrejas nos Estados Unidos (apesar de o Presidente as mandar abrir), Sean Feucht lançou um movimento chamado “Let Us Worship” (deixa-nos adorar), que tem crescido e tomado proporções imensas. Ele vai de cidade em cidade, organizando “prayer protests” (protestos de oração) onde milhares de pessoas cantam e rezam com ele ao ar livre. Num dos mais recentes, o vice-presidente Mike Pence também esteve presente. O movimento começou como um protesto contra o encerramento das igrejas, continuando agora como uma indignação ao ligeiro pisar da liberdade religiosa. Podem realizar-se eventos culturais ou políticos, podem ir milhares ao funeral de Ruth Bader Ginsberg, ou a uma marcha feminista, mas os crentes não se podem reunir para rezar? De novo, os candidatos apresentam respostas diametralmente opostas a esta pergunta.
É sobre o aborto. Muito se tem dito sobre a nomeação e confirmação de Amy Coney Barrett para o Supremo Tribunal. Joe Biden, Kamala Harris e todos os democratas dizem que tal processo não deve occorrer durante uma camapnha eleitoral. A Constituição americana, no entanto, nada diz sobre isso. O que é verdade é que Joe Biden, Kamala Harris e todos os democratas referem Amy Coney Barrett como uma ameaça ao plano de saúde que Obama iniciou e Biden quer continuar, em que o aborto é central, afirmando também que os “direitos reprodutivos” da mulher ficam ameaçados por esta juíza. Biden, Harris e os democratas mostram-se abertamente preocupados com a conservação do aborto legalizado nos Estados Unidos. A administração Trump tem dado passos históricos para eliminar o aborto. Um dos temas centrais da Convenção Repulicana deste ano foi a eliminação do aborto. Este é um assunto crítico para o eleitor americano. Muitos votam apenas por causa deste assunto e ninguém lhe é indiferente. Os candidatos não poderiam estar em lados mais antagónicos.
É verdade que se assiste a um turbilhão social nos Estados Unidos. E alguns dos motivos podem não ser bons. Mas, por outro lado, também é verdade que será dos poucos sítios do mundo onde existe uma “maioria silenciosa” a batalhar, numa luta aberta e árdua, contra uma minoria muito ruidosa que controla quase tudo, incluindo os meios de comunicação.
Atualmente, seria difícil encontrar em Portugal alguém com um autocolante na camisa a dizer em quem votou, ou com um cartaz no quintal, como fazem os americanos. Por cá, o risco do turbilhão social é menor, mas também não é costume manifestar-se opinião política em conversas privadas e dialogar de forma cívica com opiniões diferentes.
Os portugueses e as pessoas que veem os Estados Unidos apenas através de um canal de notícias, por vezes enviesado, podem ficar surpreendidos com os resultados da eleição americana deste dia 3 de Novembro. Não deviam. Há quatro anos, as sondagens anunciavam Hillary Clinton à frente da corrida, com 12 pontos de vantagem. Este ano, as notícias também insistem que Trump não pode ganhar justamente, embora os “rallies” dele e os desfiles organizados pelo povo estejam a abarrotar e ninguém apareça nos “rallies” de Biden.
Se Trump ganhar, podem dizer que houve fraude ou que pessoas ignorantes e do campo foram vítimas de lavagem cerebral por um sociopata. No entanto, poderá também ser, porque o país dos Estados Unidos nasceu com valores muito diferentes dos valores europeus atuais. Existe uma maioria silenciosa que ainda adere a essa filosofia e que ainda trabalha para defender esses valores, embora de forma mais escondida dos meios de comunicação. Numa sociedade pluralista e tolerante seria bom aprender a respeitar as ideias diferentes, a dialogar sem chamar nomes e a manter a amizade mesmo assim.