Na sequência de uma lesão epidural em setembro de 2022, fiquei paraplégica funcional e numa cadeira de rodas durante meses. Só uma vez andei de transportes públicos, pois geralmente ia de boleia de carro, de táxi ou de transporte de doentes. Dessa vez, o meu filho de seis anos e filha de oito anos alternavam-se para me empurrar na cadeira de rodas, e o meu marido empurrava o carrinho de bebé, que era mais pesado. Fomos de casa até ao metro. Fiquei furiosa, a olhar à minha volta e a dizer em voz alta: porque ninguém nos oferece ajuda? Éramos a cena mais vulnerável e mais a necessitar de ajuda possível: seis crianças pequenas e a mãe em cadeira de rodas. Quase todos olhavam para o telemóvel. Alguns falavam uns com os outros. Ninguém oferecia ajuda e tivemos que a pedir pontualmente. Ninguém parecia feliz em ajudar. Alguns até a sair do passeio para nos deixar passar; pareciam irritados.

Uma amiga disse-me que isto piorou desde o Covid e acho que ela tem razão. A propaganda do governo e os meios de comunicação deram orientações que são diametralmente opostas ao cristianismo: protege-te, salva-te, afasta-te dos outros, fica sozinho, fica em casa, não visites familiares no hospital ou no lar, o mais “responsável” é conservares a tua saúde física.

Digo diametralmente opostas porque a Irmã Lúcia, por exemplo, escreve nas suas Memórias como viveram a gripe espanhola na sua aldeia. Uma noite, ela levou sopa e foi ajudar uma família que tinha ficado toda doente. O pai manifestou preocupação: ela também podia ficar doente, mas ela foi na mesma. Disse: se estou lá para ajudar os outros, Deus me há de proteger. E assim foi.

Jesus cura leprosos várias vezes no Evangelho. Os leprosos não só tinham uma doença contagiosa, como eram considerados “impuros” pela religião judaica e não podiam passar as muralhas duma cidade nem ir ao templo. Jesus, ao curá-los, assume a sua “impureza”. Toca-os. E assim cura não só a doença física, mas acolhe-os e inclui-os de novo na comunidade. Santa Teresa de Calcutá também servia os leprosos e muitos outros santos serviam e tocavam nos mais desprezados e “impuros” da sociedade.

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Agora já ando de bastão de caminhada, ou seja, com apoio. Participei em dois eventos da Jornada Mundial da Juventude, JMJ, e senti da multidão uma prontidão para ajudar. Não vi quase ninguém a olhar para os telemóveis, mas sim uns para os outros, a cantar, a falar, e a olhar para mim: com o meu bastão de caminhada e os meus seis filhos, dispostos a ajudar.

Num excesso de confiança, fui a pé para o metro e torci o pé. Fiquei com o tornozelo inchado e sensível durante alguns dias. O meu marido teve a ideia de irmos na mesma para a vigília com o Papa, sábado à noite. Inscreveu-nos como prioritários, tendo eu certificado de incapacidade, e fui de cadeira de rodas por causa da distância a percorrer até ao recinto e também por causa do tornozelo.

Saímos de dois táxis no meio do trânsito parado, o mais próximo que conseguimos chegar ao recinto de automóvel. Sentei-me na cadeira de rodas, abrimos dois carrinhos de bebé e preparámo-nos para nos dirigir até ao recinto com três veículos para empurrar: para empurrar tínhamos o meu marido, os meus dois filhos mais velhos (7 e 9 anos), e uma vizinha de 12 anos que nos ajudava.

Um grupo de americanos estava a passar por cima da estrada onde saímos dos táxis. Gritaram de longe, “podemos ajudar?” Desceram rapidamente. Eram dois padres, alguns adultos, e vários adolescentes. Um dos padres começou logo a empurrar-me. Ele chamava-se Mike e era irmão do outro padre, que se chamava Gregory. Eram dois de 11 irmãos e o pai era militar. Father Mike era um padre diocesano, que tinha ido para o capelão duma base militar americana. Tinha feito “boot camp” e tudo. Ainda tinha só trinta e poucos anos.

O irmão mais novo, com vinte e tal anos, era Legionário de Cristo. Ainda era só seminarista, por isso se chamava Brother Gregory. Tinham frequentado uma escola de Legionários de Cristo até ao décimo segundo no estado da Georgia. O Father Mike morava lá, na base militar, mas o Brother Gregory estava a estudar em Madrid. Já não se viam há dois anos e tinham-se encontrado na JMJ. Brother Gregory e os jovens dos Legionários que estavam com ele iam para a mesma secção que nós. Father Mike e o seu grupo da base militar iam para outra secção. Tirámos todos uma fotografia numa esquina e os dois irmãos despediram-se. Deram um abraço, disseram “bye brother” e “love you man” e cada um seguiu o seu caminho, na sua missão. O Father Mike passou a minha cadeira de rodas para o irmão Gregory.

A certa altura, parámos para ver no mapa para onde íamos e peguei na mochila do Brother Gregory porque a queria levar no meu colo, para o ajudar um pouco. Ele reagiu logo e disse, essa é a minha mochila. Parecia que ele levava chumbo lá dentro, era tão pesada. Eu insisti que queria levar a mochila, mas ele não deixou mesmo. Pôs a mão no meu ombro e disse, “Julie, deixa-te ser amada.”

Brother Gregory e o seu grupo levaram-me até sentarmos na nossa secção. Empurraram-nos, conversaram e brincaram com os nossos filhos. Brincaram com eles numa rampa, a fingir que era um escorrega. Trocamos números e disseram que podiam ir ter connosco para nos ajudar quando quiséssemos voltar.

Uma amiga passou por nós nessa noite e ficou radiante de me ver. – Tenho pensado tanto em ti, disse ela, e queria tanto arranjar maneira de te trazer a ver o Papa. Fico tão contente por te ver!

Nessa noite, na vigília, o Papa disse, “E quando virmos alguém, um amigo nosso, que caiu, que devemos fazer? Levantá-lo. Reparai, quando alguém tem de levantar ou ajudar uma pessoa a levantar-se, que gesto faz? Olha-a de cima para baixo. Trata-se da única ocasião, do único momento em que é lícito olhar uma pessoa de cima para baixo: quando queremos ajudá-la a levantar-se.”

Este grupo de americanos literalmente levantaram-me e empurraram até ao Papa. Como os amigos que levaram um paralítico pelo teto para chegar a Jesus, no segundo capítulo de Marcos. Foram extremamente atenciosos, focados no outro e não em si, com pequenos gestos e linguagens de amor que só quem está atento sabe comunicar e receber.

Os meios de comunicação arranjaram tudo o que podiam de negativo e sensacional da JMJ que podiam. No ano de preparação, era padres pedófilos para aqui e custos do palco para ali. Durante a JMJ, era sobre um evento insignificante e controverso que não estava incluído no programa da JMJ. Havia também uns jovens que beberam de mais e outros que saltaram um muro.

Mas, como diz São Paulo em Romanos 12,21: “vence o mal com o bem”. Um milhão e meio de peregrinos inundaram a cidade de Lisboa e venceram com alegria incontestável e generosidade imensa. Na vasta maioria, eram jovens felizes e saudáveis, a cantar, a socializar e a rezar sem drogas e álcool, com modéstia de t-shirts. Na sua maioria, ficaram alojados em locais com poucas condições, como verdadeiros peregrinos. Já foi um grande esforço financeiro conseguir viajar do seu continente. Não fizeram muito barulho nem atiraram muito lixo para o chão. Não estavam sempre a olhar para os telemóveis, mas estavam disponíveis para os outros e para o Outro.