Na primeira parte explorei a indefinição da operação de adição mas, como o sistema educativo está habituadíssimo a (pode até dizer-se que é dependente de) recorrer ao parâmetro média das classificações obtidas nos diversos momentos de avaliação, compreende-se que as coisas ainda se podem complicar mais. A média, que depende de uma adição e de uma divisão bem definidas, é o parâmetro estatístico mais popular, o mais utilizado e com maior relevância na avaliação escolar.

Observe-se o caso de um aluno que tem duas avaliações, uma de nível 2 e outra de nível 3, com percentagens de 20% e 50%, respetivamente. A sua média, se calculada por níveis, é considerada positiva (nível 3), mas se calculada pelos valores percentuais é claramente negativa (35%). Mesmo com uma avaliação de nível 2 e outra de nível 4, esta situação pode ocorrer: 2 e 4 dá média 3 (positiva); se as respetivas percentagens forem 20% e 70%, a média é 45% (negativa).

Então, em que ficamos? O aluno em causa tem um desempenho médio positivo ou tem um desempenho médio negativo? Como resolver esta dúvida que coloca o aluno em resultados tão diferentes que se podem traduzir na progressão ou na retenção?

A situação é ainda mais grave se acrescentarmos à análise a combinação dos resultados das classificações internas com as obtidas nas Provas Finais.

Quando um aluno do 9.º ano tem uma classificação interna negativa numa disciplina para a qual está prevista a realização de uma prova final, ele tem o direito e é-lhe dada a oportunidade de realizar essa prova, cuja classificação vai contribuir para se determinar uma “média final”, ponderada, atribuindo-se os coeficientes de ponderação de 0,7 à classificação interna e de 0,3 à classificação da prova final. Estes coeficientes de ponderação são os mesmos para os alunos do ensino básico e do ensino secundário, mas para estes últimos vigora a escala de 0 a 20 valores, que é melhor e bastante mais favorável.

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Admitamos que um aluno do 9.º ano obtém uma classificação interna de 45%, correspondente ao nível 2. Esta classificação, para um aluno do ensino secundário, equivale a um 9, na escala de 0 a 20 valores. Para que aquele aluno do 9.º ano consiga uma média final positiva e, portanto, fique aprovado na disciplina em causa, tem de conseguir alcançar uma classificação de nível 4 ou de nível 5 na prova final, ou seja, é-lhe exigida uma classificação maior ou igual a 70%. Porém, tratando-se de um aluno do ensino secundário com igual classificação interna, para que a média final seja positiva bastar-lhe-á obter 55% (11 valores) no exame final.

Avaliar nunca pode ser “bota abaixo”. Avaliar tem de ser, necessariamente, para estimular e valorizar. Consequentemente, é claramente injusto que alunos com classificações internas equivalentes (45%) estejam sujeitos a condições mínimas de aprovação final consideravelmente distintas: 55% para o que é avaliado na escala de 0 a 20 valores e 70% para o que é avaliado na escala de 1 a 5. Apeteceria dizer: “isto é gozar com quem trabalha”. Estamos a castigar os mais frágeis. A humilhação de um aluno não pode ser defensável. Em 2015, Manuel Oliveira, vice-presidente da Associação Nacional de Professores, dizia que esta escala «dificulta a recuperação de alunos» e cria «uma cadeia de injustiças extremamente desmotivadora para as crianças».

Porque será que ainda se mantém esta escala de classificação das aprendizagens para mais de um milhão de alunos? Não tenho dúvidas de que se trata de uma escala nitidamente datada e prejudicial para muitos alunos, subordinada a uma pedagogia romântica e irreal, que dá preferência à homogeneização, assumindo um combate à diferenciação através de legislação que determina classificar como iguais desempenhos que se reconhece serem consideravelmente diferentes.

É claro que a admissão da função positiva da avaliação e classificação das aprendizagens não é universal e, desde há muito, vai acalentando debates entre os que entendem que devemos ser tendencialmente todos iguais e os que defendem a vantagem da assunção das diferenças, para identificação e apoio aos mais necessitados e melhoria geral.

Logo após o 25 de abril, no ambiente político pós-revolucionário característico de uma época em que se andava, naturalmente, à procura de novos paradigmas que diferissem das práticas habituais do sistema político e anacrónico que acabava de ser deposto, assistiu-se, em várias circunstâncias, à aplicação das denominadas “passagens administrativas”. Isto é, não era atribuída qualquer classificação, com o objetivo, considerado na altura como “ideologicamente superior”, de não discriminar, de não diferenciar através de uma nota na tradicional escala de 0 a 20, pois «havia quem achasse que atribuir notas aos alunos era um tique do capitalismo e não interessava se um era melhor do que o outro». Foi neste envolvente sociológico, afetado pela revolução que pôs fim a uma atmosfera autoritária e ditatorial, dominante durante quase meio século, que fermentou a ideia de uma “espécie de avaliação escolar”, que chegou a ser aplicada a muitos milhares de estudantes, resumida a dois níveis de desempenho, «apto» ou «não apto». Todos os que tivessem frequentado estavam “aptos”.

Tanto inevitável como natural, a euforia e a respetiva balbúrdia nos anos letivos de 73/74 e 74/75 abalou profundamente o sistema de ensino e a avaliação escolar. Ainda no decorrer deste último ano letivo (22/05/75), o diretor-geral da Educação, Raúl Gomes, enviou para os Liceus e Escolas Técnicas a extensa Circular L-T-ES/31/75, onde considerava que, «seja em que sistema for (capitalista ou socialista)», a escala «apto/não apto», era «profundamente deformadora da realidade humana» e que a recusa de avaliação «não passa de uma reação individualista e tipicamente burguesa (…) que nenhum socialismo esclarecido pode perfilhar. Apesar de tudo, Marx, Lenine e até Staline frequentaram escolas burguesas. Se Marx e Lenine puderam ser o que foram (…) não foi através de passagens administrativas nem copiando pelo colega do lado».

Percebe-se que muitos dos altos dirigentes revolucionários não aceitavam compactuar com uma escala de avaliação de conhecimentos tão pobre e tão pouco diferenciadora. Assim, logo após o término do ano letivo 74/75, o Conselho de Ministros entendeu haver a necessidade de estabelecer «certas normas mínimas relativas aos critérios de avaliação do aproveitamento escolar dos alunos do ensino superior, entre as quais a rejeição da classificação por Apto e Não apto.». Suplantados pela evidência social, assume-se então que «as razões que motivam esta decisão quanto à tabela de classificação baseiam-se, fundamentalmente, no facto de, não vivendo as escolas divorciadas da sociedade em que estão implantadas, se dever ter em consideração a estrutura nesta vigente no que se refere ao provimento e promoção profissional das pessoas, bem como à avaliação dos méritos de cada uma. De outro modo estão a defender-se situações equívocas que só contribuem para criar ilusões e, em última análise, para sacrificar as pessoas cujos interesses se querem proteger. (…) De facto, o que já começa a verificar-se é que, perante diplomados com classificação de Apto, várias instâncias profissionais ou se recusam a admiti-los ou os classificam no fundo da escala, isto é, depois de todos os indivíduos com classificações numéricas, por baixas que sejam.» (aqui está uma excelente análise da realidade). Esta Resolução do Conselho de Ministros determinava que o valor positivo «Apto» se tivesse que diferenciar em maior número de escalões, pelo menos dois.

Foi neste contexto que Rui Grácio, Secretário de Estado da Orientação Pedagógica, instituiu o 7.º ano unificado, inaugurando uma escala de avaliação por níveis, com três escalões positivos. Esta mudança foi estabelecida através de despachos (enviados por circulares internas em junho/julho de 1975) que nem sequer são publicados em Diário de Governo. Na circular n.º 2, de 25/06/75, o próprio Rui Grácio escreveu que «as medidas já anunciadas (…) não foram porém precedidas de consulta pública» para evitar «demoras inevitáveis (…) na preparação e organização do próximo ano letivo». Não obstante, o atraso no envio dos programas escolares era tal, que, «na terceira semana de outubro, foi necessário enviá-los em aviões da Força Aérea para numerosos pontos do país» (Mais vale cedo do que nunca, Graça Fernandes, Tavares Emídio, 2018).

Para Rui Grácio, a criação do ensino unificado era «uma adequação do ensino às exigências políticas, económicas e culturais da sociedade portuguesa» mas, na verdade, as exigências da sociedade portuguesa estavam ainda em discussão pelos deputados da Assembleia Constituinte, pelo que aquela medida chegou a ser avaliada como uma imposição «ao povo português numa manobra golpista e traiçoeira» (O Governo da Educação em Portugal, Rui Machado Gomes, 2005). O próprio ministro da Educação do governo seguinte, Sottomayor Cardia, assumiu que «o lançamento do 7.º ano unificado foi uma ação precipitada de todo incompatível com o rumo sereno mas firme que se requer para a renovação do sistema de ensino» (despacho n.º 243/76 de 4/08/76).

Foi assim, em pleno período revolucionário e à pressa, que nasceu o Ensino Unificado e se colocou em vigor, até ao 9.º ano, uma escala ordinal com a qual nunca se deveriam ter feito adições nem calculado médias (como determinar a média de um desempenho Reduzido com um desempenho Médio?). Malogradamente é isso que se tem feito e se continua a fazer.

Verifica-se, portanto, que há quase meio século os alunos do ensino básico são avaliados numa escala codificada, não numérica, que, ao ser tratada, enganadoramente, como numérica, acarreta os erros aritméticos que se explanaram e que tem um enorme défice na capacidade de motivar aprendizagens e de estimular melhores desempenhos. Percebe-se que é uma escala de avaliação desfavorável para o aluno e que não serve para o informar suficientemente de modo que este se empenhe de forma ativa na sua evolução.

Sei, por conversa na primeira pessoa, que já houve um ministro da Educação que teve vontade de implodir esta escala de avaliação, por clara preferência pela escala que é usada em todos os restantes ciclos de ensino. Contudo, a preocupação pedagógica não encontrou as condições políticas suficientes.

Nefasta ao estímulo escolar, ao progresso das aprendizagens e à franca análise entre o que já se aprendeu e o que ainda tem para se aprender, será que, numa outra onda, surgirão as condições políticas suficientes para que outro ministro decida que é tempo de despir esta camisa de onze varas?

Para terminar, abro um parêntesis a propósito das decisões políticas de Rui Grácio, personalidade reconhecida na área da educação, que pertenceu a três dos primeiros governos provisórios e chegou a ter poderes como ministro da Educação. Vale a pena uma breve nota sobre episódios vergonhosos da nossa história escolar. Foi este governante que, em 17 de outubro de 1974, determinou que as Direções-Gerais do Ensino mandassem destruir os livros e revistas de índole fascista existentes nas bibliotecas escolares (e não tenho dúvidas de que a mesma pessoa abominava, e muito bem, a existência de listas de livros proibidos pelo Estado Novo). Meses depois, foi a Diretora-Geral da Educação Permanente, Maria Justina Sepúlveda Fonseca, que, através da circular n.º 1/75, avisou que «é chegada a oportunidade» de se passar, «com urgência», ao «saneamento dos livros que não reúnam condições ideológicas, literárias ou técnicas para continuarem a ser dados à leitura», enviando duas listas de livros, A e B, uma para destruição completa e outra para a destruição de páginas que contenham frases dos ex-presidentes do Conselho, Salazar e Caetano, com assunção explicita do “carrego ideológico” no próprio texto da circular. Das destruições desses exemplares, pelo fogo, foram lavrados Autos, na presença de duas testemunhas.

Embora enquadrado pela asserção de Ortega Y Gasset de que «o homem é o homem e a sua circunstância», não é fácil esticar a plasticidade da minha compreensão a estes “autos de fé” tão distantes, temporalmente, da época da “Santa Inquisição”. Se me é difícil compreender estes atos bárbaros, como hei de conseguir agora, meio século volvido, aceitar a estapafúrdia cultura de cancelamento, a destruição e os autos de fé que vão ocorrendo por esse mundo fora?

O Homem repete-se, mas não consigo deixar de acreditar nas vantagens de conhecer a História.