A Sara tinha 25 anos e era espanhola. Bonita, loira e de olhos azuis, tinha diabetes tipo 1, aquela doença em que as pessoas são dependentes de insulina. O seu primo, da mesma idade, tinha a mesma doença e foi no início de Julho que decidiram ir os dois à aventura para Portugal. No carro velhote do primo, lá chegaram a Lisboa, cidade que adoraram. Nos dias seguintes, ficaram num Hostel e gastaram o dinheiro quase todo em festas, noitadas, bebidas e música. A Sara notava que a doença não andava bem, porque os valores do açúcar no sangue estavam sempre altos, mas estava a divertir-se tanto, que não ligou muito. E continuou a divertir-se, a comer mal e a más horas, e a beber bastante, quer bebidas alcoólicas, quer refrigerantes. Mas tinha cada vez mais sede.
Ao fim de uma semana, tinham estoirado o dinheiro quase todo. A Sara também tinha cada vez mais sede e a máquina que media o açúcar no sangue já não o conseguia medir, só assinalava HI (elevado). Então decidiram regressar. Juntaram todo dinheiro que sobrava e usaram-no para atestar o carro de gasolina. E partiram de volta para Madrid.
Mas era evidente que a Sara estava cada vez pior. No carro, encolhida no lugar ao lado do primo, em posição fetal, começou a deixar de lhe responder, enquanto respirava fundo e depressa, como se não houvesse ar que chegasse.
O primo estava assustadíssimo. Não sabia o que fazer. Talvez não parar até Madrid, mas não sabia se a Sara se aguentaria até lá. Ou então parar pelo caminho, mas não sabia onde havia hospitais e se a tratariam correctamente. A meio de Portugal, tomou uma decisão, saiu na direcção de Évora e só parou na urgência do hospital.
Eu estava de serviço na Unidade de Cuidados Intensivos, quando me telefonou uma colega da urgência, que por acaso também se chamava Sara. Estava no primeiro ano da sua especialidade, tinha 24 anos, e era nova e ainda pouco experiente. Estava a estagiar durante 12 meses no serviço de Medicina Interna e eu sabia quem ela era.
Disse-me:
– Dr. Tiago, tenho aqui uma jovem com uma diabetes descompensada e preciso do seu apoio.
Não percebi. Os doentes com diabetes descompensada não costumam ir para os cuidados intensivos. Precisam de ser compensados, com soro e insulina, e isso é habitualmente feito em unidades de cuidados intermédios, como o SO (que fica na urgência geral) e não nos cuidados intensivos. E foi o que lhe disse. Mas ela insistiu:
– Dr. Tiago, por favor venha cá ver a doente…
Eu conhecia-a e não a achava disparatada. Algo de assustado na sua voz me fez largar os meus doentes e ir à urgência ver o que se passava. E era realmente assustador.
A Sara-doente estava numa maca, em posição fetal, a respirar muito rápido e fundo e de olhos fechados. Quando a chamávamos e lhe fazíamos perguntas, mal abria os olhos e respondia de forma quase inaudível. Ao lado da maca estava a Sara-médica e o primo da Sara-doente. Acho que estavam os dois igualmente assustados, mas a Sara-médica disfarçava muito bem.
Quando vi o resultado das análises à acidez do sangue da Sara-doente, tive dificuldade em acreditar.
A acidez do nosso corpo é muito bem regulada. O seu valor, medido pelo pH, deve variar entre 7,35 e 7,45. Se for abaixo de 7,35, estamos ácidos, e algo se passa que não é normal e pode ser grave. Se for abaixo de 7,2, considera-se uma situação muito grave. A Sara tinha pH de 6,7.
Não costumamos dosear os ácidos propriamente ditos, apenas a acidez. Mas doseamos os antídotos naturais dos ácidos, as bases, sendo que a principal base no nosso corpo é o bicarbonato. Os seus valores devem variar entre 22 e 26. A Sara tinha apenas 1,5 de bicarbonato. Não tinha um pH ainda mais ácido, porque os pulmões estavam a respirar loucamente, tentando eliminar o ácido mais fácil de eliminar, o dióxido de carbono. Os seus níveis devem variar entre 35 e 45. A Sara estava a eliminá-lo o mais que conseguia, pela respiração. Tinha 10 de dióxido de carbono.
Tudo isto era resultado da sua diabetes descompensada. É verdade que este tipo de situações costuma ser tratada nas unidades de cuidados intermédios. Mas este caso ultrapassava tudo o que eu já tinha visto. Estes valores de acidez, de bicarbonato e de dióxido de carbono… pensava que não eram sequer compatíveis com a vida! Mas ali estava a Sara, por enquanto a demonstrar o contrário.
O registo de urgência da Sara foi feito às 16h23m. Entrou às 17h24m na Unidade de Cuidados Intensivos, onde lhe coloquei um tubo fininho de plástico numa veia do pescoço, deixando a ponta do tubo perto do coração e por onde lhe administrei enormes quantidade de soro e de iões e de insulina.
Entretanto, tentei perceber o que tinha levado uma mulher de 25 anos chegar a este ponto. E fui falar com o primo. Com um ar desgraçado, e perdido, este estava sentado à porta da Unidade, visivelmente nervoso e sem saber o que fazer. Lá me contou a sua história e tudo o que se tinha passado. Percebi que não tinha dinheiro, nem sítio onde ficar. Tinha o carro, com gasolina, e nada mais.
Falei com os enfermeiros, todos nos condoemos com a situação. Da copa da Unidade, arranjámos pão, queijo e leite. E nessa noite ele dormiu no carro, no parque do hospital.
No dia seguinte, falei com o capelão do hospital, o Padre Agostinho, e ele falou com o Seminário de Évora, e lá arranjaram uma cama onde o primo pudesse dormir nas noites seguintes.
Também fizemos uma vaquinha na Unidade e entre todos arranjámos algum dinheiro para lhe emprestarmos.
Entretanto, a Sara, como todos os jovens, dava a volta por cima e, ao fim de 3-4 dias, já estava muito melhor, pronta para ir para a enfermaria. Mas o hospital estava cheio e não havia vagas nas enfermarias. Acabou por completar todo o tratamento na Unidade. Os pais, avisados pelo primo, vieram de Madrid. No dia em que finalmente teve alta, pediu para tomar um banho e usou o chuveiro da Unidade que nunca nenhum doente tinha usado (quase todos estão doentes demais para isso e, quando melhoram, vão para a enfermaria). E não saiu sem se maquilhar, toda vaidosa!
Saiu bem, com os pais e o primo, que muito nos agradeceram, dizendo que tinham sido melhor tratados do que em qualquer hospital em Espanha! E um ano mais tarde, recebemos na Unidade uma fotografia da Sara, sorridente e a fazer o sinal de vitória com os dedos. Por trás, escreveu a agradecer e terminava com “Eu estou bem. Milhões de beijos de Espanha, Sara”.
Médico