Não há coisa pior do que uma traição e eu, que sou cristão, preciso de me lembrar que a melhor coisa que tenho, essa fé cristã, precisou do horror que a traição é. O cristianismo é mais inteiro porque exige a traição no palco principal. Sim, as cenas finais são de vitória com a ressurreição de Jesus e seu regresso iminente. Mas antes foi absolutamente necessário que o herói provasse a amargura de ser traído. O triunfo de Cristo não acontece sem a presença de algumas derrotas.
Na história cristã a traição multiplica-se. Primeiro, porque ao contrário do que tantas vezes se lembra, não há um traidor nos discípulos de Jesus mas dois. Há Judas e há Pedro. Há um traidor que traidor será, e há um traidor que deixa de o ser. O destino do primeiro é o suicídio, o destino do segundo é a Igreja. Creio haver nesta distinção algum espaço para a ironia mas não exijo que outros concordem comigo—certo é que quem se dedica a viver para a Igreja passa momentos em que o suicídio não parece tão pior assim (um pastor é uma pessoa com potencial constante de Judas mas que tem de viver como Pedro). A traição também se multiplicou na história cristã porque, ao passo que Judas traiu uma vez só e o assunto ficou vitaliciamente arrumado, Pedro traiu três. É possível quem repete o mesmo erro ter mais esperança do que aquele que de uma vez só o faz com toda a perfeição.
Esta história da vida de Jesus é, no mínimo, surpreendente. Nela traem os maus mas traem os bons também. Também por causa disso, a salvação que Jesus oferece não é apenas porque ele apaga o nosso mal; é igualmente porque ele o apresenta. Afinal, os melhores discípulos fazem coisas parecidas com as que fazem os maus discípulos. Nesse sentido, o cristianismo ajudou o mundo a compreender que a primeira democracia é a da infidelidade. Este é o verdadeiro eleitorado da fé—homens que traem. Claro que ao admitir isto, importa dizer que o critério da Igreja pediu a Pedro mais do que Pedro tinha dado na sua fraqueza: é possível que um discípulo traia mas não é desejável que continue traindo.
Qualquer cristão pode fazer em 2023 o que Pedro fez há dois mil anos. Para isso, basta ser mais fiel a qualquer pessoa ou coisa do que a Cristo. Trair Jesus é a coisa mais fácil do mundo porque o mundo está cheio de coisas e pessoas que não são Jesus. Ficar com apenas um quando se pode ter tanto mais, eis o que é árduo em ser fiel. O milagre não é que ainda exista cristianismo em 2023; mas como pode haver cristianismo com tanto 2023 dentro dele. Na prática, este é um prodígio constante porque o número do ano pode mudar mas a luta é a mesma. Ficar com Jesus quando se pode ficar com tanto mais é o real contorno da fidelidade, o oposto da traição.
Felizmente a Bíblia oferece mais texto ao rescaldo da traição de Pedro e a história continua melhorando. No evangelho de João (21:15‐19), é relatado o reencontro entre Jesus e o fraco discípulo, agora marcado pela reabilitação feita nas três vezes que o Mestre lhe pergunta se ele o ama. Estas linhas não escondem a dificuldade da conversa mas a repetição serve os lentos de compreensão e os lentos na obediência. Por cada não que Pedro deu, houve um “sim, Senhor; tu sabes que te amo”. A insistência é uma garantia de que o amor vence.
Se Pedro tinha sido a pessoa que negou quem era, fez‐se depois uma pessoa de novas afirmações. Com essas novas afirmações pôde, depois de ser quem negou quem era, ser outra vez. Graças à insistência de Jesus, Pedro teve uma vida além da traição que cometeu. O Pedro que ainda há pouco tempo tinha desistido de ser discípulo, foi feito pastor. Deixem-me parafrasear a nova ordem de Cristo: “Pedro, Pedrinho, Pedrão! Não julgues que por não te achares à altura de continuares a ser quem foste, te vou livrar do trabalhão de teres de ser ainda mais cuidando dos meus!” Mais do que apenas responder a uma ideia que tinha acerca de si próprio, sendo ou não um discípulo fiel, Pedro teve de responder a uma Igreja. O cristianismo não é uma ideia, é uma igreja—não é apenas o que julgo acerca de mim, é o que me dando aos outros serei, fazendo eco do sacrifício salvífico de Cristo.
Não foi por acaso que no futuro os problemas de Pedro estivessem mais relacionados com ele compreender a dimensão do rebanho, tendo a Igreja de juntar judeus e gentios, do que com ele compreender a dimensão da sua tarefa de pastor dela—quanto mais nos damos a vidas novas, menos protagonismo tem a nossa. É também a partir daqui que nasce uma esperança para qualquer traidor quando se torna cristão: todos conseguimos ser Pedros a desistir de vocações que já julgámos nossas, mas só Cristo consegue dar-nos uma vocação que não desiste de nós. Se for a voz do que nos chamou pela primeira vez a chamar-nos de novo, seremos mais do que a velha multiplicação das nossas traições.