Paul Veyne, um colega de profissão francês já desaparecido e que muito admiro, falando de como se escreve História e de como tudo o que acontece cai sob a sua alçada, dizia que os historiadores costumam ter, ainda assim, mais propensão para se interessarem por uma guerra do que pelo buzinão dos carros engarrafados na avenida, a não ser, pois no nosso mundo tudo é possível — acrescentou ele com ironia —, que esse buzinão desencadeie uma guerra.

Lembrei-me disto a propósito da questão do novo logótipo do governo da AD. Ainda não deu direito a uma guerra, mas o confronto cultural já está (aliás, já estava) declarado porque a esquerda bate o pé. E fá-lo com tanto ruído que um jornalista foi ao ponto de perguntar a Luís Montenegro se já estava arrependido de ter mudado o logótipo. A indignação da gente de esquerda é, também, suficientemente ruidosa para me interessar. E aquilo que acho mais interessante analisar, não é tanto o bem ou mal fundado da decisão de Montenegro — com a qual, diga-se de passagem, concordo —, não são os méritos ou deméritos do design anterior, nem a eventual excelência do designer responsável por ele, mas a aflição e a argumentação das almas de esquerda.

Importa dizer que a esquerda reagiu de duas formas diferentes e até certo ponto opostas. Os seus líderes políticos, Pedro Nuno Santos, Mariana Mortágua e Paulo Raimundo, quiseram desvalorizar esta primeira medida do governo da AD na tentativa de mostrar que Montenegro, afinal, só se preocupa com ninharias e irrelevâncias, coisas sem verdadeiro peso na vida das pessoas. Mas esse seu esforço de desvalorização caiu em saco roto. Nas hostes da esquerda, o povo urbano ensopado de wokismo até aos ossos, não foi nessa cantiga e veio para as redes sociais e para os artigos de jornal — no Público, claro, mas também no DN e noutros órgãos de comunicação — contestar o novo logótipo e defender o anterior. Foi cavada a primeira trincheira.

É importante notar que com duas ou três excepções os cronistas de direita ignoraram o assunto ou não o sobrevalorizaram. Foi a esquerda que veio a público em torno disto, carpindo mágoas e fazendo de um assunto com uma carga política e simbólica significativa, mas, apesar de tudo, menor, uma grande questão da nossa actualidade. E os termos em que tem feito a defesa do anterior logótipo e em que tem atacado a decisão de Luís Montenegro, dizem muito sobre o que é a esquerda actual.

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No que toca à defesa do logótipo anterior é interessante constactar que se alegam razões de legibilidade, de qualidade conceptual e gráfica, de mérito profissional do designer que o criou e de melhor adequação da sua criação aos actuais meios e modos de comunicação, mas omite-se a referência à ideologia e visão do mundo que lhe estão subjacentes. É que, na verdade, o anterior logótipo, encomendado pelo governo de António Costa e aplicado em meados de 2023, simplificou a bandeira nacional, suprimindo castelos, quinas e esfera armilar, algo que se justificou, não apenas por vantagens do design, mas, também, por razões ideológicas. De facto, o manual de aplicação dessa nova identidade visual considerou que, assim, despida dessa simbologia, ela era “inclusiva, plural e laica”.

Não sei quem justificou as coisas dessa forma. O director de comunicação do governo de António Costa nega que tenha sido de sua lavra, deixando que se crie a ideia de que terá sido o designer ou outrem. Ainda assim, não livra o governo do PS do peso e da intencionalidade dessa justificação, porque quem cala consente. Ora o que é interessande, e revelador da parcialidade dos opinadores de esquerda, é que, na defesa desse logótipo, tenham omitido esta circunstância tão importante, procurando fazer passar a ideia de que a opção por aquele logo tinha sido puramente técnica e não carregadinha de ideologia.

Mais interessante, porém, é a forma como os opinadores de esquerda atacam o novo logótipo oficializado pelo governo da AD, que é, na verdade, a recuperação do logótipo que vinha desde 2011, dos tempos de Passos Coelho, e que, então, se justificava “como um reforço da auto-estima dos portugueses e do orgulho no seu país” e como um apelo “ao patriotismo”.

Como em caso de guerra importa contar espingardas, foi lançada uma petição pública “Contra a reversão da nova identidade visual do governo de Portugal” que, no momento em que escrevo, conta com mais de sete mil signatários e cujo texto é um autêntico panfleto woke. Mas o ataque a esta primeira medida do governo da AD assumiu muitas formas, algumas francamente absurdas. Houve, por exemplo, quem referisse que ela abalava a “auto-estima” dos funcionários públicos, que vão ter de alterar tudo novamente. Houve quem dissesse que não faz sentido mudar o logótipo institucional sempre que se muda de governo, esquecendo que foi justamente isso que o governo de António Costa fez em 2023. Outros (quase todos), num acesso de dramatismo tardo-revolucionário, associaram a defesa do logótipo do governo de António Costa à defesa do 25 de Abril. Uma das articulistas veio mesmo despedir-se desse logótipo com um comovido e esperançoso “até já” e com um voto: “Que façamos Abril e que adoptemos (o dito logo) como nosso cravo na celebração dos 50 anos do 25 de Abril”.

Se o ridículo matasse boa parte da nossa esquerda estaria no cemitério.

Mas voltemos ao assunto para assinalar que, à esquerda, também se censura a primeira medida do governo da AD por ter sido decidida por motivos políticos e ideológicos. Claro que o foi, como a anterior também foi, mas as gentes de esquerda, sempre alvas e puras, suprimiram esse facto dos seus cérebros. O logótipo de 2023 — o chamado “ovo estrelado” — foi uma opção politica e ideológica a que agora política e ideologicamente se respondeu. E bem. Os países não têm de alterar os (ou abdicar dos) seus símbolos para integrarem e incluírem outros. Esse é um objectivo woke que se manifesta assiduamente no desejo de alterar o hino nacional, a base dos programas de História ou de suprimir símbolos, remover estátuas, demolir monumentos, etc. Esse objectivo é errado, é venenoso, e é positivo que Luís Montenegro e o seu governo pareçam entender isso muito bem.

Lendo os vários ataques ao logótipo adoptado pelo governo da AD dá para perceber que há na esquerda muitas pessoas que confundem símbolo nacional com símbolo nacionalista, que julgam que nacionalismo e patriotismo são sinónimos, e que está está convencida de que as referências históricas e culturais que constroem a nossa identidade de portugueses — as quinas, os castelos, etc. — são coisas retrógradas, de mau gosto, salazarentas e próprias da extrema-direita. Como é que a já referida articulista que quer que o logótipo se converta em cravo do 25 de Abril vê esta recente medida de Luís Montenegro? Vê-a como “o populismo, o saudosismo do Estado Novo, dos descobrimentos, do colonialismo, dos tempos da outra senhora. Esta possidonice e retrocesso ao logo (dos tempos de Passos Coelho) não é mais que um piscar de olho da AD aos eleitores do Chega”.

Por esta ou outra via, a maior parte dos ataques de esquerda à primeira medida do governo da AD vai desembocar no Chega, garantindo-se que ela seria prova de que Montenegro andava a reboque desse partido. Há mesmo quem diga que seria prova do crescimento da extrema-direita, havendo, até, quem, a esse propósito, evoque Trump e Bolsonaro. Tudo isto revela uma visão paranóica das coisas e uma incapacidade para distinguir, nas várias direitas, nuances, diferenças estruturais e convergências ocasionais. Nada de novo numa esquerda que, em tempos não muito distantes, considerava que o CDS e o PSD eram fascistas. Tudo isso eram meros papões com que os esquerdistas tentavam simplificar a realidade observável e policiar os discursos dos outros, para condicionar raciocínios ou conversas e meter medo a pessoas imaturas ou mentalmente pouco assumidas. Ao que tudo indica  esses papões estão, agora, novamente assanhados.

Mas o que mais nitidamente ressalta desta campanha de contestação ao novo logótipo do governo da AD é que a esquerda gosta de se ver a si própria como progressista, moderna, inovadora e saudável, e de ver a direita como reaccionária, obscurantista e malsã. E é dessa colina de suposta superioridade moral e política que o povo de esquerda — ou talvez seja mais adequado dizer o povo woke — mira, de cima para baixo, sobranceiro, o resto dos mortais. A suposta virtude de que se acha portador explica a forma abespinhada como reagiu a este primeiro desaire, rangendo dentes e rasgando as vestes. Revela, também, o medo que sente de que venha a haver outras reversões de medidas e de derivas culturais introduzidas pelos governos do PS para satisfação própria e da extrema-esquerda que durante oito anos se abrigou à sua sombra. Eu espero que, neste âmbito, esta esquerda woke tenha muitos dentes para ranger e roupas para rasgar, porque estes últimos oito anos foram um tempo de cedência ao wokismo e é saudável refazer algum caminho.

PS: Na caixa de comentários ao meu último artigo, em que critiquei André Ventura e o Chega, houve uma pergunta relevante para o tema que agora aqui me traz. De facto, um leitor, aparentemente incomodado e surpreendido com essa crítica, perguntou como é que eu, assumidamente anti-woke, censurava o Chega, o único partido que, na sua visão, afrontava o wokismo e que tinha, nesse combate, uma das suas principais bandeiras. Como agora se verifica, a AD também enfrenta o wokismo, como já o CDS publica e assiduamente fazia, aliás. A oposição a essa ideologia não é e nunca foi um monopólio do Chega. Digamos que é uma área em que AD e Chega podem convergir ou coincidir, sem que isso implique qualquer amálgama como a esquerda gosta de acusar. Quanto às linhas com que me coso relativamente ao Chega, o problema desse partido não é, para mim, a bandeira do anti-wokismo, são outras. E é, também, o seu porta-bandeira, claro.